Mas que diabos, eles usam aba reta!

Os próprios shoppings afirmam em suas notas não haver saques. Desse modo, defender a proibição de garotos nesse espaço acaba por ser a expressão crônica da defesa de exceções



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Conta Montaigne, num dos primevos e incautos exercícios de Relativismo Cultural, que na invasão grega à Itália o Rei Pirro debruçou-se atônito, diante da ameaça não à sua coroa, mas a seu próprio etnocentrismo, sob as seguintes aspas: "Não sei que espécie de bárbaros são estes, mas a formação de combate que os vejo realizar nada tem de bárbaro". À época dos escritos do colossal filósofo francês, o Ocidente se ocupava em discernir se os selvagens do Novo Mundo possuíam ou não almas, enquanto ele debatia sobre o quanto nós – seja lá quem a 1ª pessoa do plural for – compartilhamos de tantas atrocidades e belezas quanto outros povos. O que não implicava, ao menos no Renascimento pungente, acatar toda a pluralidade de práticas de valores, como Montaigne brada em fina auto-ironia: 'Mas que diabos, eles não usam calças!'.

A bem da verdade, no entanto, a História não há de ser rasgada, sobram infelizes passagens, da Inquisição ao Holocausto, em que o juízo sobre o exótico teve feições mais que de estranheza, posto que de dominação. O modo mais cruel para promovê-la, ao fim de contas, passa pela desumanização do dominado. E pior: pela internalização do dominado de que ele o é porque merece.

Pois bem. Nas últimas semanas, um fenômeno chamado 'rolezinho' ocupou mais do que os shoppings, debates por toda escala de cores ideológicas. Para muitos, aliás, o termo adequado seria 'invadir', o que explicita a óptica de não-pertencimento desses jovens àquele espaço, a Meca onipresente (visto que, em tese, acessível por todos os cantos) do Capitalismo. Dentre os discursos que visam legitimar essa noção – enfim mostrando como é que se tratam os pretos, ou quase pretos de tão pobres -, e lastimamente reproduzido por camadas populares, uma voz já devidamente esgarçada, dada a constante verborragia reacionária, vem a público não por coincidência usando os termos supracitados. Com o perdão do mestre Montaigne, por colocá-lo ao lado de tão má companhia, segue a definição de Rodrigo Constantino, direitólogo da Veja: "São bárbaros incapazes de reconhecer a própria inferioridade, e morrem de inveja da civilização".

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Não há de se desafiar Pirro. Rodrigo Constantino quer ser mais realista que o rei, nega o espaço à diferença. Afora o shopping, não compre o seu discurso. Os próprios shoppings, por sinal, afirmam em suas notas não haver saques. Desse modo, defender a proibição de garotos nesse espaço, ainda que o direito de ir, vir e dar um rolé não infrinja nada da Constituição, acaba por ser a expressão crônica da defesa de exceções – ou seja, que independentemente do previsto na lei, alguns podem ser tratados distintamente, já que são bárbaros. É propriamente sob esta chancela que massacres foram produzidos historicamente. E àqueles que interpelam a comparação ao apartheid pedindo salvaguardar devidas proporções, vos digo: o peso de atrocidades passadas não anula a força da opressão vigente, tampouco a urgente resistência.

Agora, se é verdade que esse fenômeno, o qual me parece ainda embrionário pra ser chamado de movimento, não tange diretamente uma crítica dos excluídos – não pequemos por otimismo -, uma vez que exprime também (!) o encanto com o consumo através das marcas expostas em riste, por outro lado deflagra para esses jovens a contradição de sua realidade: seu dinheiro não paga, eles não são bem-vindos. Apenas através da percepção desta distinção para com os outros é que se dá aquilo que desde Spinoza chamamos por 'consciência'.

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Daí, pois, que há de se perceber o discreto charme do rolezinho. Exatamente porque esses indivíduos, à priori, precisam alcançar essa consciência e organização por si próprios, é que a associação da classe média a eles – como sugerido por eventos que pipocam pelas redes sociais - descaracteriza a natureza do fenômeno, que é a demarcação segregacional – que não abarca, por obviedade, aqueles que a ida ao shopping configura rotina e não rolé -, e acaba por reproduzir o lastro magistral da burguesia: a apropriação dos bens do povo. Parafraseando por oposição Alba Zaluar, apenas 'cidadãos', e não 'bárbaros', vão ao paraíso – neste caso, do consumo.

Reconheçamos a diferença de nossas posições sociais, mais ou menos privilegiadas, criemos formas de apoio (inclusive por espaços de discussão) e dentre os romanos, em vez de Constantino, Pirro. Não obstante não serem bárbaros, esses jovens podem – e devem – se organizar por eles mesmos. Ainda que, mas que diabos, eles usem aba reta!

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