Liberalismo requentado e cidadania

Resgatar de modo descuidado e grosseiro idéias do período do capitalismo "laissez-faire", como fez o Estadão, constitui um retrocesso que só faz rebaixar o debate intelectual entre grandes pensadores



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O primeiro período de Getúlio Vargas no poder é geralmente considerado pela historiografia como um avanço em termos de modernização da economia brasileira e de implantação de direitos trabalhistas. Enquanto que "a conspiração paulista", que levou à Revolução Constitucionalista de 1932, é classificada como reação iniciada por empresários paulistas que não tiveram seus interesses contemplados na ordem política que se formou a partir de 1930.

Mas o autor do artigo "O 9 de Julho, de Getúlio ao PT" classifica a Revolução de 1932 como resistência de grupos esclarecidos e democráticos ao governo ditatorial de Getúlio. O autor, um dos proprietários do jornal O Estado de São Paulo, afirma que os motivos da revolta paulista de 1932 continuam valendo até os dias atuais. Mas agora, em 2014, o desafio é vencer Lula e o PT.

Quem acompanha as particularidades da imprensa tradicional paulista não se surpreende diante da interpretação -- do próprio jornal, evidentemente -- segundo a qual a História do Brasil, desde fins do Século XIX, se confunde com a história do Estadão. Talvez outros comentadores se interessem em discutir afirmações destituídas de sentido, como "outorga de direitos sem a contrapartida de deveres", que teria sido feita por Getúlio, ou a concessão de Lula de "salários sem a contrapartida de trabalho".

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O objetivo, aqui, é destacar a inusitada apresentação de idéias baseadas na Filosofia Política e que supostamente amparam a posição política do Estadão. É comovente a menção a eventos históricos que teriam inspirado a crença na "vontade popular, democraticamente aferida", e, ainda, no "mérito do trabalho como única fonte de legitimação do poder econômico". Nada disso é novidade para pesquisadores que se dedicam a estudar "think-tanks" conservadores, francamente pró-mercado, como o Instituto von Mises, por exemplo, voltados para um público de recorte ideológico específico. Contudo, em se tratando de um jornal de circulação nacional que atua no contexto da democracia de massa devidamente consolidada, como é a realidade brasileira, esses recursos retóricos causam impacto pelo seu tom extemporâneo. Ninguém no Ocidente pretende substituir a vontade popular como base da legitimação do poder político. Ainda que a democracia representativa seja melhor definida como processo e não como obra concluída.

O atraso retórico é mais evidente quando se trata de acomodar ideologicamente a desigualdade social. Ao afirmar que apenas o mérito e o empenho no trabalho podem ser evocados para justificar o "poder econômico" -- isto é, a desigualdade social e a concentração da riqueza social -- estão recorrendo a argumentos que foram criados no Século XVIII no nascedouro do liberalismo econômico. Em texto de 1690, John Locke, primeiro e decisivo ideólogo das convicções liberais, afirma que a origem da propriedade privada está relacionada ao trabalho de cada homem que modifica determinado recorte da natureza, acrescentando valor a recursos que, dessa forma, passam a ser sua propriedade. A genialidade de Locke ao apresentar o trabalho como instrumento de criação de riqueza e da propriedade, não impede que as contradições do argumento sejam evidenciadas já naquela época:

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"a grama que meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério que extraí (...) tornam-se minha propriedade. O trabalho que era meu, retirando-os do estado comum em que se encontravam, fixou a minha propriedade sobre eles".

É claro que o leitor pergunta-se imediatamente como é que surgiu o criado. Por que diabos alguém aceitaria ser um empregado quando poderia, com seu próprio trabalho, criar uma propriedade para si mesmo? Exegese à parte, a explicação ideológica do "nascimento" da propriedade carece de credibilidade e de lógica pois parte de situações anteriores nas quais a desigualdade já estava instalada. Locke não viu problema em classificar a propriedade privada como um direito natural e, ao mesmo tempo, afirmar que a sua existência e segurança dependiam de um pacto social. Ou seja, para existir e para ser respeitada, a propriedade privada depende de um contrato entre os homens. O caráter imprescindível da ordem política para a efetividade da propriedade privada fica evidente, entre outros aspectos, nas leis que garantem e regulamentam os direitos de herdeiros. E aqui é preciso mencionar que o sucesso profissional está diretamente relacionado à renda familiar e, mais grave ainda, que a educação tem sido usada como instrumento para "cimentar privilégios".

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A defesa de princípios liberais como se a História da humanidade tivesse sido congelada em Adam Smith tem o objetivo bem definido de afirmar a pureza do indivíduo que rejeita toda ajuda e segue pela vida como se fosse um Robison Crusoe, sozinho em sua ilha, contando apenas consigo mesmo. Pelo menos até surgir o providencial Sexta-Feira, que foi rapidamente transformado em escravo.

O que nos leva de volta ao artigo do Estadão e às palavras de exaltação do trabalho e do mérito como únicos meios aceitáveis de garantir a própria sobrevivência. Resgatar de modo descuidado e grosseiro idéias do período do capitalismo "laissez-faire" constitui um retrocesso que só faz rebaixar o debate intelectual entre grandes pensadores, pois transforma em doutrinação os princípios que expressaram o que havia de mais avançado nas sociedades dos Séculos XVIII e XIX. Em nossos dias, essas idéias requentadas estão em clara contradição com o processo histórico de consolidação e ampliação dos direitos civis, políticos e sociais. A constituição da cidadania significou uma verdadeira revolução que modificou definitivamente as sociedades nacionais e nos colocou onde estamos hoje, na "era dos direitos".

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O artigo do jornal termina com palavras de exortação endereçadas aos paulistas que, acredita o autor, estão agora resistindo "quase sozinhos" ao PT e a Lula, como ocorreu em 1932 na oposição a Getúlio. O apelo aos paulistas está baseado na suposição segundo a qual São Paulo, a unidade da federação, pode ser substituída pela burguesia paulista, e esta pelo jornal O Estado de São Paulo. Não deixa de ser uma licença ideológica.

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