O mistério dos vândalos

O objetivo dos vândalos é político, ou antipolítico para ser mais exato. Eles querem contestar a autoridade, valendo-se do confronto



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A chamada grande mídia, como sempre seguida por seu séquito de repetidores, dividiu o público presente nas manifestações de rua do mês passado, em duas turmas: uma maioria de Manifestantes do Bem, que estariam lá para consertar o Brasil, e uma minoria de Manifestantes do Mal, os chamados vândalos, que estariam lá só para quebrar e saquear.

As duas turmas tiveram tratamentos bem diferentes, até opostos, por parte da mídia. O pessoal do Bem foi cantado em prosa e verso. Sobre os do Mal, ninguém disse nada, além dos repetidos xingamentos. Falaram de um rapaz que teria carregado vinte (isso mesmo, gente: vinte!...) coquetéis molotov pendurados no pescoço (esta foto eu queria ver, daria uma nota preta na imprensa internacional...) e de outro que é amigo da Marina e se arrependeu logo. E foi só. Nada mais disse a grande mídia nem lhe foi perguntado.

Como observador meio bobo e mal informado, fiquei sem saber quem eram esses Manifestantes do Mal, o que queriam e por que agiam da forma que o fizeram. Nenhum de nossos magníficos repórteres investigativos os entrevistou ou fuçou seus antecedentes.

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Ninguém tentou tirar-lhes as máscaras, ficou tudo num mistério impenetrável, o mistério dos vândalos. E, no entanto, eles encarnam uma força política pra lá de atuante e uma inegável habilidade estratégica. Foram os primeiros a se juntarem à grande massa ainda em formação, nas primeiras passeatas, eram amigos próximos e colaboradores de seus organizadores e só se destacavam dela quando as coisas começavam a pegar a fogo para voltarem ao grosso da manada quando isso era taticamente proveitoso.

Alguns amigos levantavam hipóteses pitorescas. Seriam formados por jovens celerados, punks, neo-nazistas e outros avulsos da direita extremada que agiam por mero amor à arruaça; outros preferiam a tese oposta, mais política, de que seriam a vanguarda jovem do PSOL e do PSTU que estariam colaborando com a retaguarda macróbia do PSDB, DEM e PPS, ou seja, os verdadeiros responsáveis pelo grosso do movimento, numa grande frente unificada de direita e esquerda pelo bem do Brasil que, aliás, já esteve atuante em outras oportunidades menos secretas.

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Bobo, como eu disse, e mal informado, não acreditei de coração em nenhuma dessas hipóteses, preferindo um pensamento mais sofisticado sobre o advento do HCE (Here Comes Everybody), de James Joyce e Norman O. Brown, que naturalmente, por sua própria natureza, reuniria manifestantes do Bem, do Mal e até do Mais ou Menos. Mas, perplexo ainda, acabei abandonando essa tese com quase a mesma rapidez que Arnaldo Jabor, por exemplo, passava, em seus comentários televisivos, da critica amarga aos manifestantes em geral para doces elogios enternecidos.

Entretanto, achei que o tema era importante. Afinal de contas, as grandes manifestações, que contaram com cento e tantos mil participantes tiveram como principais resultados, em ordem crescente, a derrubada do PEC do Ministério Público (que aliás já era esperada), a queda de popularidade da Presidente Dilma (que, contudo, não lhe diminuiu a potencialidade eleitoral) e, acima de tudo, a divulgação, a promoção, a farta exposição na mídia e, portanto, a valorização da ação dos vândalos que, ao contrário do ventre em que foram gestados, ou seja, as Manifestações do Bem, continuam a se repetir e até a se multiplicar, com cada vez mais jovens, com máscaras cada vez mais pitorescas e táticas cada vez melhor articuladas.

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Na busca infrutífera por uma explicação, acabei por lembrar de minha própria juventude. Venho de longe, aos dezesseis anos de idade, presenciei em Porto Alegre ao grande quebra-quebra que celebrou o suicídio do Presidente Vargas. Como naquela ocasião, as ações pareciam promovidas pelo que Sartre chamou de grupo-em-fusão, na Crítica da Razão Dialética. Hoje, tais grupos destratam o governador Sergio Cabral, perguntam pelo destino do pedreiro Amarildo, acusam de culpados os burgueses da rua Dias Ferrreira, quebram caixas eletrônicos de bancos, incendeiam lixo na meio das ruas, etc. Dou esses exemplos porque foram os únicos que presenciei ao vivo aqui nas ruas do Leblon, onde vivo. Mas logo percebi que seu verdadeiro objetivo, o espírito que os animava, era um só: a contestação da autoridade. Ou seja: o objetivo e o espírito do anarquismo. Sim: nossos vândalos são anarquistas clássicos.

"Quem quer que coloque a mão sobre mim para me governar é um usurpador e um tirano – e o declaro meu inimigo", exclamou Proudhon, o primeiro dos grandes pensadores libertários, autor de uma frase tão simples quanto poderosa – "A propriedade é roubo". Segundo Bernard Shaw, "os ladrões foram vingados quando Proudhon provou que a burguesia rouba".

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Todo aquele que contesta a autoridade e luta contra ela é um anarquista. Anarchos, a palavra grega original significa simplesmente "sem governante". Acreditam os anarquistas que assim como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia, na ausência de um soberano. O objetivo é a substituição do estado autoritário por alguma forma de cooperação não-governamental entre indivíduos livres. Todos os anarquistas concordam ao considerar-se apolíticos e até mesmo antipolíticos. A máquina do Estado não deve ser tomada mas abolida. O leitor que estiver interessado em se aprofundar no assunto pode começar com os dois volumes da História das ideias e movimentos anarquista, a formidável obra de George Woodcock.

A violência é um aspecto fundamental na filosofia anarquista. Alguns a abominavam, como Tolstoi; seus discípulos não a admitiam quaisquer que fossem as circunstancias. Mas Bakunin, por exemplo, um lutador nato, tinha outro ponto de vista e a admitia conforme a necessidade. Eis a mais famosa citação de Bakunin:

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"Confiemos no eterno espírito que destrói e aniquila porque é a inexplorada e eterna origem de toda vida. A ânsia de destruir é também uma ânsia criativa".

A ânsia de destruir é também uma ânsia criativa. Eis a filosofia de nossos vândalos. É preciso reconhecer que fazem coquetéis molotov (uma arma caseira, de fabricação super simples) mas não usam armas de fogo convencionais. Quebram as caixas eletrônicas dos bancos mas não as fuçam em busca de dinheiro. Os roubos de roupas e outras quinquilharias podem ser atribuídos a pivetes acostumados a descolar algum ganho em qualquer oportunidade. Não tem nada a ver com eles. O objetivo dos vândalos é político, ou antipolítico para ser mais exato. Eles querem contestar a autoridade, valendo-se do confronto. Sabem que não serão vitoriosos e podem ser esmagados, a qualquer momento, pelo poder letal muito superior do Estado. Mas o que lhes interessa é o beau geste do confronto. O anarquismo é um romantismo.

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