João Paulo Cunha fala sobre ‘Diário da Queda’

"Num texto complexo e espiralado, o autor mexe com um tema que é caro a humanidade: o horror do holocausto", escreve o ex-deputado, sobre a obra do brasileiro Michel Laub

"Num texto complexo e espiralado, o autor mexe com um tema que é caro a humanidade: o horror do holocausto", escreve o ex-deputado, sobre a obra do brasileiro Michel Laub
"Num texto complexo e espiralado, o autor mexe com um tema que é caro a humanidade: o horror do holocausto", escreve o ex-deputado, sobre a obra do brasileiro Michel Laub (Foto: Gisele Federicce)


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247 – Em nova resenha publicada em seu blog, o ex-deputado federal João Paulo Cunha fala sobre a obra "Diário da Queda", do gaúcho Michel Laub. "Num texto complexo e espiralado, o autor mexe com um tema que é caro a humanidade: o horror do holocausto", opina João Paulo. "Efetivamente um bom livro. Curto e profundo".

Leia abaixo a íntegra de sua resenha:

Diário da Queda

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Contém Spoiler

O passado, instruído num diário de poucos dias longos, é marcado por quedas físicas e anímicas. São marcas indeléveis que carregamos pelo resto da vida. As do físico, às vezes, são tatuadas pelo corpo e expostas feito outdoor. As do psíquico são solitárias e quase sempre atormentam. Num tempo qualquer da vida se tenta uma plástica para remover as marcas do corpo e um divã para curar as notações da alma. Michel Laub, em seu livro Diário da Queda, da Companhia das Letras, navega por esses mares. Mas iça velas e vai além.

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Num texto complexo e espiralado, o autor mexe com um tema que é caro a humanidade: o horror do holocausto. Michel traz um friso de luz singular no debate e, num ir e vir de drama pessoal com desgraças coletivas, mostra as dimensões de uma queda.

O narrador, homem de quarenta anos, é atiçado a lembrar de acontecimentos pretéritos a partir de quedas do presente. O exame clínico do pai que acusa o aparecimento do Alzheimer (é ele que dará a noticia ao Pai), a decisão de ter um filho com sua terceira mulher e a decisão de parar de beber.

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O avô do narrador é sobrevivente de Auschwitz, mas foge desse assunto como o diabo da cruz, pois acha que tudo que tinha que ser dito já foi dito. Convive com as lembranças do passado que muitas vezes "pode ser uma prisão ainda pior que aquela onde" ele esteve. Tem um caderno onde, secretamente, anota tudo de forma solitária trancado no escritório.

O pai, ao contrario do avô, vive a repetir as histórias do holocausto sempre da mesma forma e utilizando inclusive a mesma entonação da voz. O pai vê o antissemitismo onde o avô não faz questão de ver. Ou finge não ver! O narrador, provavelmente o alter ego de Michel Laub, também não quer falar desse assunto.

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Ele estuda num colégio tradicional da cultura judaica. Quando um jovem judeu completa 13 anos, está preparado para ser iniciado no mundo adulto. Processa se então uma cerimônia denominada Bar Mitzvah. Nesta escola estuda um menino, João, não judeu (denomina-se Gói), filho de pobre e que sofre todo tipo de Bulling. Quando este Gói faz 13 anos, de forma modesta, seu pai resolve fazer a cerimônia para iniciar o filho. Os meninos judeus tinham uma brincadeira de com os braços entrelaçados jogar o aniversariante 13 vezes ao ar. Ocorre que como corolário da opressão que o não judeu sofria, no décimo terceiro levantamento do menino ao ar eles cruzam os braços e o Gói se espatifa no chão. A partir daí, se para a maioria dos judeus do colégio aquele gesto não foi nada de mais, para o narrador foi um corte profundo em sua vida. Uma queda física que alcançou a alma!

Da experiência escolar o narrador rapidamente enxerga o sofrimento de seu avô. Quem teria sido o responsável por não segurar a rede de seu avô e deixá-lo espatifar no chão de Auschwitz? Descobriu que começava a vida adulta com um furo em sua rede e que ao cruzar os braços cravou uma marca em si próprio que, se a vítima não esqueceria jamais, ele também teria que conviver com esta queda a vida toda.

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Ele muda de escola, vira amigo do gói João (os dois vão para a mesma escola) e lembra sempre das traquinagens e maldades que os colegas da escola, judeus, faziam com João. Experimenta o álcool e conhece os prazeres de um puteiro. Seus questionamentos geram tensão com o pai. Isso culmina numa surra aplicada pelo pai, que ele jamais esquecerá.

Nas contradições da vida e da espécie humana o que mais o incomoda é o sofrimento e a perseguição imposta aos judeus e ao mesmo tempo a prática dos pequenos judeus da escola, na perseguição ostensiva a um menino pobre e não judeu. Havendo oportunidade, os oprimidos se vestem de opressores e em hordas praticam crueldades sem o peso da culpa individual.

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O pai do narrador cuidava da loja e vivia um drama. Além das dificuldades crescentes com o filho (o narrador) ele se incomoda com a intensidade do isolamento do pai (avô do narrador). Não é normal à pessoa ficar o tempo todo trancado no escritório, inclusive comendo e dormindo. Esse drama se exaspera quando, "num domingo, perto das sete horas da manhã" o pai (do narrador) foi acordado com um estampido e correndo para o escritório vê o velho judeu, que "não gostava de falar do passado", debruçado sem vida sobre a escrivaninha. O estampido seria lembrado para sempre como se fosse o apito de Auschwitz.

A partir da morte do progenitor, o filho de forma reservada recolhe os cadernos escritos pelo pai, manda traduzir e fica espantado com suas anotações. Só platitudes e singelezas: "como o mundo deveria ser". Por que seu pai (avô do narrador) não quis falar do holocausto como o judeu Italiano Primo Levi falou?

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O avô deixa para as gerações futuras não a foto de Auschwitz, mas um compêndio acaciano de um mundo róseo. Não queria lembrar desse passado, muito menos escrever sobre ele. Aquilo que o fez sofrer era para esquecer. Escreveu "como o mundo deveria ser" porque ele carregava na memória a imagem do "mundo real", tendo como parâmetro as muralhas e os fornos de Auschwitz.

O narrador não queria carregar o ar de Auschwitz, mas via nas lembranças da queda de João um gosto parecido. Tinham mais quedas que não sumiam de sua cabeça: a surra do pai, os escritos e a morte do avô, a ida para São Paulo (ele morava em Porto Alegre), o medo de andar de avião, o exame do pai diagnosticando o Alzheimer, o jeito agressivo de João tratá-lo na nova escola, provocando-o com desenhos de Hitler em folhas de caderno e colocando em sua mochila.

Estabilizado em São Paulo, empregado e vivendo com sua terceira mulher, resolve mudar de vida e toma as primeiras atitudes: parar de beber e ter um filho.

Quando vê o filho nascendo, o narrador constata definitivamente que mudou de vida: "Ter um filho é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana". Até essa altura da vida o narrador, de forma resignada, vivia turrando que a "inviabilidade da experiência humana" estava decretada. Afinal, ter um avô que atravessou o portão de Auschwitz, um pai que lhe aplicou uma surra aos 14 anos, um amigo que como gratidão desenhava Hitler e colocava a folha em sua mochila, o álcool como bússola de seu caminho, o cruzar de braços para ver um não judeu se espatifar no chão, além das experiências conhecidas dos milhões de mortos em massacres na China, URSS, Camboja, Bósnia, Ruanda e tantos outros era definitivamente uma amostra de que a experiência humana estava inviabilizada.

Contudo, não gostaria que essas marcas fossem experiências dominantes na relação com o filho. Não martelaria suas quedas. Foram acontecimentos próprios. E agora, diante do filho, falando consigo mesmo, refletia: "Não vou atrapalhar sua infância insistindo no assunto. Não vou estragar sua vida fazendo com que tudo gire em torno disso." Esse pensamento diante do filho faz o corte reclamado e numa "fração de segundo o que você foi até ali vira passado".

Com o olhar pregado no futuro, resignava-se perante o mistério da vida e suas pontes geracionais. Efetivamente um bom livro. Curto e profundo. Michel Laub é um bom escritor!

João Paulo Cunha
Fevereiro/2014

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