Cunha sobre Veríssimo: “ajuda o Brasil a pensar”

João Paulo Cunha resenha "Os Últimos Quartetos de Beethoven", que traz contos "intensos e meditativos", que podem "fazer rir ou chorar"; sobre a escrita do brasileiro, o ex-deputado avalia: "Ler suas crônicas é quase como ler uma notícia. Aliás, é uma notícia: só não tem data"

João Paulo Cunha resenha "Os Últimos Quartetos de Beethoven", que traz contos "intensos e meditativos", que podem "fazer rir ou chorar"; sobre a escrita do brasileiro, o ex-deputado avalia: "Ler suas crônicas é quase como ler uma notícia. Aliás, é uma notícia: só não tem data"
João Paulo Cunha resenha "Os Últimos Quartetos de Beethoven", que traz contos "intensos e meditativos", que podem "fazer rir ou chorar"; sobre a escrita do brasileiro, o ex-deputado avalia: "Ler suas crônicas é quase como ler uma notícia. Aliás, é uma notícia: só não tem data" (Foto: Gisele Federicce)


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247 – A nova obra resenhada por João Paulo Cunha é "Os Últimos Quartetos de Beethoven", de Luís Fernando Veríssimo, uma obra que traz contos curtos, mas "intensos e meditativos", que podem "fazer rir ou chorar". Ele faz um relato sobre a forma de escrever do consagrado escritor brasileiro:

"Suas crônicas relatam o dia a dia, sempre de forma reflexiva. Acostumamos a vê-lo escrevendo sobre o cotidiano. Seus personagens são encontrados nas ruas do Brasil e nas viagens pelo mundo afora. Seu som ambiente é o bom e velho Jazz. Ler suas crônicas é quase como ler uma notícia. Aliás, é uma notícia: só não tem data".

Leia abaixo ou em seu blog a íntegra da resenha: 

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Os Últimos Quartetos de Beethoven

Numa sacola que alguém deixou na portaria do presídio da papuda, entre jornais e revistas, percebo um livro de capa vermelha, de Luís Fernando Veríssimo, denominado "Os Últimos Quartetos de Beethoven", da Editora Objetiva. Quando se fala de Luís Fernando Veríssimo os cantos da boca se elastecem e os dentes saltam para fora, formando um sorriso. Lembro-me do Analista de Bagé, da Velhinha de Taubaté e das tiras do Boca (Família Brasil) a ilustrar suas colunas, no jornal "O Estado de S. Paulo".

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Suas crônicas relatam o dia a dia, sempre de forma reflexiva. Acostumamos a vê-lo escrevendo sobre o cotidiano. Suas personagens são encontradas nas ruas do Brasil e nas viagens pelo mundo afora. Seu som ambiente é o bom e velho Jazz. Ler suas crônicas é quase como ler uma notícia. Aliás, é uma notícia: só não tem data.

Esse livro (quase livrinho porque se lê rápido) é composto de nove contos e um contículo. São intensos e meditativos. Aparenta trivialidade e graça. Pode fazer rir ou chorar. São histórias curtas. Personagens extraídas do cotidiano, inseridas em roteiros críveis e inspiradas nos defeitos e nas virtudes dos seres humanos. Suficientes para deixar o leitor sem respirar ("Sabe que eu não me lembro de ter medo? Tinha raiva"), mas sem morrer afogado ("O sentimento era de ultraje. A palavra é essa. Desamparo e ultraje."). Ele está falando da tortura que dois jovens sofreram na ditadura militar.

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Os contos ali dispostos lembram mergulhos. De apneia, quando em "Contículo", em uma página o autor mostra o drama de um homem que tem medo de voar de avião e o prazer, decorrente desse medo, em pegar "a mão da mulher" que está ao seu lado, depois "abraçar", "agarrar o seio" para no final pedir: "comece a tirar a roupa!". No mergulho com aparelhos, em "A Mancha", Veríssimo coloca um ex-preso político a rememorar sua luta contra a ditadura e revê a mancha de sangue no carpete do quarto onde ele foi torturado e que lembrava o mapa da Austrália. Agora, ele está prestes a derrubar aquela casa, pois ao retornar do exílio virou um empresário que demole casas velhas para levantar novas. Seu ofício é "comprar o passado, renovar, vender e enriquecer mais. Ou comprar o passado, destruir e pensar no que fazer com o vazio."

Semelhanças e coincidências metafóricas. Mas ele se sente meio derrotado: "Duvido que alguém ainda se lembra de alguma coisa dos anos 70". Tem também os contos rápidos. Um thriller "esperando que a morte venha tirá-lo para dançar". E os quase romance dizendo "que não se pode ficar esperando que a vida nos tire para dançar, nós é que temos que persegui-la, enlaçá-la e sair rodopiando".

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Fala de amor torrencial e cruel: "O essencial numa sedução não é o sedutor nem a seduzida, é o marido." De amor doce: "Lo [ou melhor, Dolores] se encantou com minha boca lambuzada de chocolate e disse que mal podia esperar para voltarmos à nossa cama no hotel." Fala de amor violento e arrogante: "A gente aguenta tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente."

A gente ri um pouco com o babaca que "chora quando o Brasil ganha bronze" ou o nobre italiano que ficou "conhecido como o último homem na Europa a ainda usar rapé e que, segundo Dolores, renunciara ao sexo, preferindo o espirro ao orgasmo."

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Luís Fernando Veríssimo é um homem com o seu tempo. Atualiza os graves e agudos de uma banda nova de Jazz. Beija a neta e fala para todo mundo. Resigna-se perante as estultices contemporâneas e insiste no Estadão.

Não esquece as atrocidades da ditadura. Um dos seus personagens fala assim: "Só o que eu quero é não esquecer. Esquecer é trair." Veríssimo, pelo seu personagem, tem razão. A vida nunca foi daqui pra frente. Mesmo que a gente tente.

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Um outro ("O Expert") vive o drama da cadeia: "O homem tinha sido preso. Não quis entrar em detalhes. Questões políticas... Na prisão não me deixaram ler nada". Até que um dia o preso teve acesso a uma "enciclopédia de vinhos" e lendo e relendo virou "uma das maiores autoridades mundiais em vinho". Nesse conto, como um grande conhecedor da alma humana e das relações entre as pessoas, Veríssimo dá um final surpreendente ao ser humano que sai da cadeia. "Voltou à atividade politica?" Alguém pergunta. O homem responde: "Não, não". E continua: Eu já "era outra pessoa. Meus companheiros tinham desaparecido ou tinham mudado. Eu precisava tratar minha vida. Procurar emprego."

Como não há barreiras para Veríssimo, ele trata de dois assuntos perturbadores em dois dos seus contos: A loucura e a morte. Mas o jeito dele abordar não é cacete. Chega a ser terno!

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Lívia tinha sua turma, que dispersou com o tempo e pelo mundo. Romperam um "pacto de sangue" que uniria "a turma até a morte". Ela tocava violoncelo e depois, ao beber com os amigos, achava que trazia "de volta à terra o espírito elevado pela música antes que ela evaporasse nas alturas.". Ela enlouqueceu.

Internada numa clínica, foi descoberta por um dos amigos que remanesceu da dispersão. Um dia ele resolveu visitar Lívia e descobriu que ela continuava amando o som do instrumento e lembrando-se da turma. Expressando seus pensamentos, discorria sobre Beethoven, sua surdez e seus últimos quartetos. E vinculava-os ao seu tempo: "A verdade é que os últimos quartetos de Beethoven não foram os últimos. Foram os penúltimos. Os últimos são os que nós tocamos". Se Beethoven fez belas peças sem ouvir nada, por que Lívia não poderia tocar aquilo que Beethoven ouvira? Nada!

O amigo quase chorando, acompanha Lívia em suas divagações. Ao final ela pede para ele ficar mais um pouco, pois logo mais iria fazer uma apresentação: "música para surdos", do seu quarteto ("com instrumentos imaginários"). "Eram dois senhores e uma moça, todos de camisolão igual ao dela. Parecia um congresso de anjos. O apelido deles na clínica era 'a turma da Lívia' ".

Ao final da apresentação, lucidamente ela pergunta ao amigo pelos outros. Magro, que ela lembrou chamar-se Felipe, o amigo que restou, "se esforça para encontrar alguma coisa para contar da turma. Algum sucesso profissional, alguma grande alegria, alguma notícia, por medíocre que fosse que justificasse terem escolhido ficar no universo de cá". Magro não encontrou nada, além da estúpida lembrança de que um deles havia mudado para Curitiba. Esta lembrança fastidiosa contrastava com o que Magro via no rosto de Lívia: "uma expressão de felicidade... tocando seu violoncelo invisível. Estava em outro universo.".

Sobre a morte, conta Veríssimo em "A mulher que caiu do céu", que ela (a morte) veio buscar Zé Roberto, mas que consternada com a vida difícil dele, sua casa, seus filhos e o amor de uma mulher descuidada, mas amorosa, ela resolveu não levá-lo. Surpreso, Zé Roberto pergunta: "Quer dizer que... Eu não vou morrer?" A morte, incorporada na mulher, responde: "Se depender de mim, não. Pelo menos não agora." E filosofa: "A morte de uma pessoa está com ela desde que ela nasce. O senhor só não tinha me visto ainda, mas eu estive com o senhor durante toda a sua vida." Como daria muito trabalho em trocar o responsável pela morte do Zé Roberto ela resolveu ficar com o próprio e dar uma forcinha em sua vida. Ele, surpreso, pergunta: "E o que faremos, os dois desempregados?" E a morte incorporada a vida, diz : "Acho que dá para dar um jeito...". E então montaram uma padaria e descobriram a felicidade. Às vezes, a proximidade com a morte faz a gente rever nossas vidas e recomeçar.

Li com prazer e num fôlego só essas 162 páginas. Ao final, fiquei com desejo de dizer ao Veríssimo que ele ajuda o Brasil a pensar. É como Bille Holliday cantando "Strange Fruit" no meio de uma batucada de japoneses. O bumbo faz barulho, mas o piano encanta.

Ah! Agradeço minha irmã Cida, que deixou a sacola naquela quarta-feira, na porta da Papuda.

João Paulo Cunha
Abril/2014

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