Em carta a Lula, Eric Nepomuceno diz que situação aqui fora é de um Brasil destroçado

Jornalista e escritor fala de sua indignação pelas injustiças vividas nos últimos anos no Brasil; no texto, diz ao ex-presidente que "tudo parece normal", mas "você, melhor que qualquer um, e eu sabemos que de normal não há nada neste país destroçado"; Nepomuceno escreve ainda ter pensado em sair do País, como na ditadura, mas se nega a repetir o ato; "De novo, não. Vou ficar e resistir com a única arma que tenho, a palavra"

Em carta a Lula, Eric Nepomuceno diz que situação aqui fora é de um Brasil destroçado
Em carta a Lula, Eric Nepomuceno diz que situação aqui fora é de um Brasil destroçado


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Por Eric Nepomuceno, no Nocaute

Lula, meu bom amigo:

Estou há tempos para escrever. Um ano, para ser preciso.

continua após o anúncio

Mas só agora consigo. Você vai perguntar como é que alguém que vive do que escreve há exatos 54 anos demora mais de um para escrever uma carta. Respondo: às vezes, a mão seca.

Cada vez que comecei a escrever para você o que acabava saindo era pura indignação. E eu não queria nem quero mandar para você uma carta irada, por mais justa que seja – e é – essa minha indignação.

continua após o anúncio

Hoje, sábado de aleluia, vamos ver se consigo.

Indignado sempre, pelo que fazem com você e com o país. Porém, serenado.

continua após o anúncio

Não preciso contar o que acontece aqui – me refiro a aqui fora – porque você continua absolutamente informado de tudo. Mas conto que nunca, Lula, em nenhum momento, achei que fosse chegar a esta altura da minha vida vendo o que fizeram e fazem com este pobre país.

Eu vivi de perto, Lula, golpes tremendos.

continua após o anúncio

Vi o Uruguai ruir em junho de 1973, vi o Chile desmoronar em setembro de 1973, lembro de Salvador Allende, vi o terror se instalar na Argentina em março de 1976.

Tive amigos mortos, tive e tenho amigos que sobreviveram a torturas selvagens, a exílios dolorosos, a distâncias e tempos irrecuperáveis. Eu mesmo passei longos anos sem poder vir ao Brasil.

continua após o anúncio

Vi meu filho aprender a ficar em pé e a andar e a falar e a escrever longe do país dele.

Vivi e vi um monte de coisas mundo afora, Lula. E achei que isso tudo era passado, era memória.

continua após o anúncio

E agora vejo e vivo o resultado de um golpe diferente. Um golpe sofisticado, perfeito: primeiro tiram uma presidenta eleita, depois prendem você, impedem que dispute uma eleição assegurada, e pronto.

Não há tanques nas ruas, não há trabalhadores e estudantes sendo torturados e fuzilados (exceto, claro, quando são pobres e em sua maioria negros), os grandes meios de comunicação funcionam sem policiais censores nas redações (nem precisa: os patrões e os chefes nomeados a dedo bastam), e tudo parece normal.

continua após o anúncio

Parece, Lula. Mas você, melhor que qualquer um, e eu sabemos que de normal não há nada neste país destroçado, à deriva, rumo a um naufrágio tenebroso. Será este nosso país um país sem memória?

Espero que não, meu bom amigo. Espero que não, e que desperte rápido desse pesadelo.

Além da dor e da indignação por tudo que acontece, Lula, ando cheio de perguntas. Por exemplo: como é que puderam votar nessa aberração que todo santo dia deposita o traseiro na poltrona presidencial?

Como é que essa aberração nomeou esse ministério todo – do qual, aliás, não escapa ninguém – que assombra o país e o mundo?

Como é que este país suporta o pior presidente e o governo mais bizarro (tirando, claro, os anos da ditadura, e ainda assim só por causa da violência e da repressão) de 130 anos de República?

Como é que vão demolindo tudo, dia sim e o outro também, e ninguém move uma palha para impedir?

Olha só, Lula, olha só: achei que estava sereno e que escreveria sem indignação. E não consegui.

Melhor parar por aqui, mas não sem antes reforçar minha amizade e meu carinho por você, pela sua gente.

Pensei em sair do Brasil por um tempo, Lula. A razão?

Conto: em 1977 conheci, no exilio em Madri, um grande escritor argentino chamado Hector Tizón.

Ficamos amigos fraternos.

Certo dia de extrema melancolia, perguntei a ele por que havia saído da Argentina.

Não estava em nenhuma organização de esquerda, não tinha vínculos com nenhum movimento, não tinha sido ameaçado. E ele me respondeu: 'Saí por asco'.

Asco pelo que faziam no país dele, Lula.

E por essa razão – asco, nojo – pensei em sair do Brasil por um tempo.

Mas não vou. De novo, não. Vou ficar e resistir com a única arma que tenho, a palavra.

E assim espero que a justiça seja feita e você volte para casa, e a gente possa enfim se encontrar de novo e pôr a conversa em dia.

Há muito o que conversar, Lula, muito. E ando precisando.

Deixo aqui, como sempre,

meu melhor abraço

Eric Nepomuceno

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247