Geração canguru. O ninho está cheio, mas eles não querem sair

A psicoterapeuta paulista Tereza Kawall examina o fenômeno da assim chamada “geração canguru”: aquela formada por jovens que, apesar de maduros, formados e prontos para se lançar no mundo, preferem permanecer na casa paterna adiando sine die a sua declaração de independência

A psicoterapeuta paulista Tereza Kawall examina o fenômeno da assim chamada “geração canguru”: aquela formada por jovens que, apesar de maduros, formados e prontos para se lançar no mundo, preferem permanecer na casa paterna adiando sine die a sua declaração de independência
A psicoterapeuta paulista Tereza Kawall examina o fenômeno da assim chamada “geração canguru”: aquela formada por jovens que, apesar de maduros, formados e prontos para se lançar no mundo, preferem permanecer na casa paterna adiando sine die a sua declaração de independência (Foto: Gisele Federicce)


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Por: Tereza Kawall. Blog: www.blissnow.com.br

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O fenômeno já é preocupante nos países desenvolvidos da Europa, e vem aumentando gradativamente no Brasil, notadamente na região sudeste, sobretudo nas famílias de alta renda. Há um ano foi publicado pelo IBGE um estudo apontando essa tendência de comportamento na qual jovens na faixa etária entre 25 a 35 anos, podendo chegar até os 40, relutam em sair da casa de seus pais. Uma combinação de vários fatores marca esse fenômeno.  Em 2000, 20% dos jovens viviam com seus pais; em 2012 esse percentual subiu para 24%, sendo que 60% dele é constituído por homens.

A respeito, diz Wasmalia Bivar, presidente do IBGE: “A geração canguru é um fenômeno mundial, não necessariamente por falta de condições dos filhos saírem de casa, mas por livre escolha tanto deles quanto dos pais. Preferem fazer graduação, mestrado ou doutorado permanecendo na casa paterna, retardam a formação de uma nova família e também buscam mais comodidade”.

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A geração canguru

Sair da casa dos pais, conquistar seu próprio espaço e autonomia, abrir as asas e alçar voo rumo à liberdade e a auto-realização – tudo aquilo que seria o movimento natural de uma pessoa jovem -, vem perdendo força e sendo postergado ad infinitum pelos integrantes da “geração canguru”. Eles são jovens na faixa etária entre 25 a 35 anos que relutam em sair da casa de seus pais, configurando uma situação de eternos adolescentes que parecem não ter interesse em chegar à vida adulta.

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Parte desses jovens que recusam se lançar no mundo de forma mais independente estão desempregados e sem perspectivas favoráveis de encontrar trabalho. Mas muitos já estão formados, diplomados e com profissão definida. Alguns já têm seu próprio negócio e desfrutam, potencialmente, de independência financeira. Outros, ainda, estão empregados e recebendo os seus salários. Mas todos esperam o “momento oportuno” ou “a pessoa certa” para se casar e ter, finalmente, sua própria casa.

As combinações desse xadrez sociológico são inúmeras, mas existe, em todos os casos, um fator comum: a resistência em perder a proteção e a segurança  do “lar doce lar” que mamãe e papai oferecem. Embalados por facilidades, conforto, proteção financeira e/ou emocional, essa  geração parece não estar disposta a enfrentar e assumir os riscos e responsabilidades da vida adulta.

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Como sabemos todos, na vida real não existem “scripts” perfeitos, roteiros planos e lineares, irretocáveis, sem desvios. Cada indivíduo fará a sua rota de forma particular, de acordo com a sua natureza, seus recursos internos e externos, com suas motivações pessoais  ou a falta delas. É inegável, no entanto, que existem fases e ciclos que são mais adequados ou indicados  para certas atividades ou funções a serem exercidas. Tais fases podem ser ligadas à procriação, podem ser intelectuais, sentimentais, criativas, profissionais, espirituais. Não por acaso nossa existência é marcada por ciclos. Queiramos ou não, tudo o que nasce, cresce e se desenvolve, depois decai e chega ao seu fim. O que essa síndrome da geração canguru está sinalizando em nosso caótico aqui e agora?

 

 

Desenvolvimento e emancipação

Desde que nasce, o bebê busca o seio da mãe. Nele pulsa, ainda intacto, o instinto de sobrevivência. Em seus primeiros anos de vida a criança tem pela frente uma tarefa crucial rumo à sua independência. Esse processo será normalmente gerenciado, com maior ou menor sucesso, pela mãe, pelo pai, ou pela família como um todo. Nesse caminho evolutivo a criança aprenderá a se movimentar, a utilizar os cinco sentidos, sentar, falar, andar, pensar, sentir, abandonar a amada chupeta, assim como as fraldas.

D. Winnicott, psicanalista e pediatra britânico que se destacou por analisar profundamente a relação entre as mães e seus bebês, estabeleceu algumas premissas básicas a respeito do primeiro ano de vida das crianças. Para fazê-lo, ele se baseou nas suas próprias observações a respeito dos fatores que determinam a saúde mental e física.

A pedra angular de sua teoria afirma que o desenvolvimento da conquista da autonomia é central nessa fase, pois o bebê deve sair gradualmente da fase de dependência absoluta para a fase de dependência relativa. O pediatra ressalta que eles nascem com um potencial de força vital e que esta é a base da criatividade que irá acompanhá-lo ou não no transcorrer da vida. Winnicott cunhou a conhecida expressão da  “mãe suficientemente boa” para definir aquela mãe que consegue suprir, de forma adequada, as necessidades básicas de seu filho.

Para todos nós, para cada etapa vencida uma nova fase se prenuncia em nosso horizonte vivencial. Assim acontece a caminhada de cada ser, o reconhecimento e a interação com os pais, irmãos, vizinhos, com a escola, os amigos, os dramas da adolescência, a magia do primeiro amor.... quem não se lembra?

Estas experiências de um lado são individuais, dada a natureza idiossincrática e particular de cada um. Ao mesmo tempo elas são universais, pois pertencem a toda espécie humana. São, portanto, arquetípicas.

 

 

Rituais de passagem

Desde tempos remotos, as mitologias de praticamente todas as culturas nos falam dos heróis e suas jornadas exuberantes de confronto e superação rumo ao encontro de si mesmos. Elas sempre nos fazem lembrar os dragões, feiticeiras e florestas que estão em nosso caminho, simbolizando nossos sofrimentos, alegrias, crises, perdas e ganhos no contínuo subir e descer, morrer e renascer da existência. Este belo e contraditório processo só termina no final da vida, final temido e evitado pela maioria de todos nós.

Ao longo da vida vamos encontrar fases de transição de um estágio para outro, situações que são chamadas de rituais de passagem. De forma bastante simplificada, dizemos que o nascimento em si já faz parte desse processo. Ao ser retirado  do ventre da mãe, o bebê perde o conforto, o silêncio e a proteção materna; sentirá a dor física, o calor, o frio e a fome que antes para ele não existiam.

Pois bem: deixar a casa dos pais também é um ritual de passagem. É a separação da origem, da matriz psíquica, daquilo que é familiar e conhecido. Este é, normalmente, um período fundamental para a avaliação das próprias ideias e valores, as necessidades e os potenciais ainda latentes. Essa experiência, como muitas outras, poderá tanto ser dolorosa  quanto gratificante, mas sem dúvida a dor da partida torna-se maior quando os pais não encorajam essa transição.

Para os pais contemporâneos – produzidos por uma civilização que privilegia a juventude em detrimento da velhice – trata-se também de uma fase importante da vida já em seu período maduro: um momento de reavaliação de suas próprias histórias, de seus êxitos e frustrações. Hora de contabilizar os sucessos e as derrotas, tanto os reais quanto os aparentes.

Quando ocorre uma postergação da saída dos filhos, pode ocorrer o risco de que as duas gerações se fixem numa espécie de adolescência eterna, e isso não é de modo algum psicologicamente recomendável. Para os pais, esse momento é conhecido como a “síndrome do ninho vazio.”

Psicanalistas e psicoterapeutas hoje citam muito o conceito de “mãe desnecessária”: figura conceitual mais atualizada que deverá substituir o conceito de “mãe protetora”.

“Ser desnecessária” é não deixar que o amor incondicional de mãe, que sempre existirá, provoque vício e dependência nos filhos, como uma droga, a ponto de eles não conseguirem ser autônomos, confiantes e independentes. Prontos para traçar seu rumo, fazer suas escolhas, superar suas frustrações e inclusive cometer os seus próprios erros. A cada fase da vida, vamos cortando e refazendo o cordão umbilical. A cada nova fase, uma nova perda é um novo ganho, para os dois lados, mãe e filho. Porque o amor é um processo de libertação permanente e esse vínculo não para de se transformar ao longo da vida. Até o dia em que os filhos se tornem adultos, constituam a própria família e recomecem o ciclo. O que eles precisam é ter certeza que nós, pais, estamos lá, firmes, na concordância ou na divergência, no sucesso ou no fracasso, com o peito aberto para  o aconchego, para o abraço apertado, o conforto nas horas difíceis...

 

 

Fatores de proteção e dependência

Há muitos fatores que contribuem para que o “ninho” permaneça sempre cheio. É preciso lançar um olhar que inclua as dimensões sociais, econômicas e psicológicas deste fenômeno. Do ponto de vista cultural, famílias de diferentes países do mundo têm sua forma especifica de interação, e essa influencia é sempre marcante no destino de seus filhos.

Sem dúvida, do ponto de vista do jovem as facilidades financeiras são um bom motivo para essa situação. Ao permanecer sob a guarda dos pais eles se beneficiam de um maior poder de consumo, pois sobrará mais dinheiro em suas mãos para gastar com baladas, viagens, carros, celulares, etc. A tentação do consumo fácil e a proteção familiar são praticamente imbatíveis. Por outro lado, essa geração parece encontrar um mercado de trabalho mais volátil e competitivo, onde a rotatividade é vista com bons olhos. No entanto, hoje é preciso ter ainda mais, autonomia e criatividade para avançar na carreira.

Estaria a atual geração de jovens mais fragilizada ou sem condições de enfrentamento face aos desafios da vida moderna? Ou são as circunstâncias familiares que se encarregam de embotar nos jovens a força e a ousadia, atributos típicos dessa fase da vida?

O mundo virtual exerce um enorme fascínio sobre a pessoa jovem. Ele facilita a interação social, a mobilidade, a rapidez, o prazer da informação instantânea. Essa aceleração do ritmo externo das coisas pode, no entanto, ter sérias consequências no mundo interno, subjetivo. O imediatismo e a incapacidade de lidar com a frustração aumentam, na mesma proporção, a ansiedade e várias compulsões. Há uma crise existencial evidente nesta geração. Em todo o planeta os interesses econômicos se sobrepõem aos interesses ambientais e, portanto, à sobrevivência da espécie humana. Existe um vazio de lideranças, uma crise sem precedentes de credibilidade no mundo político. Acreditar em quem? Votar para quê? Muito mais fácil focar só no presente e no prazer imediato que a alienação e os cinco sentidos podem proporcionar.

 

 

Quanto aos pais, quais os motivos para se manterem nessa situação? Alguns se valem de suas próprias histórias e afirmam: “Eu tive que dar a cara para bater muito cedo, e não quero que meu filho passe por isso”. Ou então “a vida hoje está muito mais difícil; é melhor que ele se prepare mais, etc, etc”.

Mas manter os filhos em casa, na condição de eternos adolescentes, não será também uma forma de garantir para os pais a sensação de posse de uma juventude e beleza eternas que, na verdade, e de modo inexorável, o tempo já lhes está roubando?

Na nossa cultura narcisista, os limites impostos pelo tempo não são bem-vindos; daí essa preocupação com a aparência, daí essa vaidade excessiva que não aceita rugas, doenças, que gera depressão e consumo excessivo de drogas e álcool como formas de compensar o vazio da alma.

Na relação que existe hoje entre muitos pais e filhos podemos observar uma aliança bilateral possivelmente perversa. À primeira vista essa aliança parece ser feita de puro amor. Mas a verdade é que quando ela assume proporções excessivas pode causar desmotivação, postergação e/ou paralização de decisões fundamentais inerentes à trajetória existencial das pessoas. Trata-se de uma proteção que desprotege, de um freio invisível que não prepara psicologicamente o indivíduo para o enfrentamento e a superação dos conflitos, das privações e das perdas inevitáveis da vida. Trata-se, não mais de um “conflito de gerações”, mas sim, muito mais, de um conflito “com” as gerações.

(*) Tereza Kawall é psicoterapeuta em São Paulo

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