A nova crise do trabalho

O trabalho está colapsando em sua totalidade. Não é só porque automatizaram a produção; porque enfiaram máquinas de fio a pavio nos fazeres produtivos; porque a produção agora é uma "info-produção". Antes fosse... O drama é muito maior; de maior envergadura, profundidade e alargamento

Paraná tem a terceira maior indústria de transformação do País. Indústria automobilística. Foto: Gilson Abreu/FIEP
Paraná tem a terceira maior indústria de transformação do País. Indústria automobilística. Foto: Gilson Abreu/FIEP (Foto: Ângelo Cavalcante)


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Não há pensador social que tenha analisado e traduzido o trabalho como o alemão Karl Marx (1818-1883); de forma profunda e rigorosamente engenhosa, original e criativa o "mouro" articula o que há de mais elaborado e sofisticado da filosofia alemã com o mais desenvolvido da vasta economia política inglesa mais o "crème de la crème" do pensamento político francês. O resultado dessa combinação é primoroso.

A humanidade, sobretudo, as classes do trabalho finalmente tem ao seu inteiro dispor um poderoso arsenal teórico-crítico em reais condições de pôr o mundo de ponta-cabeça. Melhor dizendo, de tornar o mundo enfim, um lugar de homens livres e emancipados; em efetivas e objetivas condições de demonstrar empírica e cientificamente a constelação de contradições que marca e determina o sistema do capital. Foi como jogar pólvora sobre brasas: o efeito foi fulminante e imprevisível.

Ao fim é o que o fundador do socialismo científico confere para os trabalhadores do mundo. Aliás, o definitivo "Trabalhadores do mundo, uni-vos!" que arremata seu paradigmático "Manifesto Comunista" é um brado pela unidade social, política e ideológica dos trabalhadores mas é também, e principalmente, a expressão da mais importante e essencial condição política dos trabalhadores. A unidade da classe do trabalho é desta feita a definitiva e única condição para a existência dos trabalhadores como seres efetivamente políticos e como possibilidade por fim, de emancipação.

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Sem essa unidade e consequente integração materializada e ativada nos concursos políticos e econômicos cotidianos a classe do trabalho se perde, se fragmenta e se fragiliza ao ponto idiotizado e melancólico de converter o trabalhador por triste exemplo, em "associado", "colaborador", "componente" ou algo que o valha e não por acaso definido por burocratas e por suas reengenharias administrativas que possuem o condão de capar e recapar a mitigada consciência de uma classe de trabalhadores encarcerada nas alienações de um tipo de vida privada e potencializada por um subconsumo imbecilizante; pela ideia de falso pertencimento social e; pelo desfrute manso e acrítico de quinquilharias info-comunicacionais.

Marx não esgotou as questões do trabalho subsumido nas dinâmicas planetárias do sistema do capital mesmo porque em momento algum se propõe a tal intento. O que a genialidade de Marx combinada com a igualmente notável razão de Friedrich Engels (1820-1895) de fato fez foi inaugurar as categorias fundamentais para a compreensão do capitalismo histórico, de seus traços definitivos e como se dá seu movimento de reprodução bem como às expensas de quem ele se dá.

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É desse edifício teórico de fundações firmes que nos é apresentada categorias de análise como: classe, modos de produção, trabalho, alienação, mais valia, mercadoria, produção/reprodução, formações sociais, dentre outras e que nos auxilia decisivamente mesmo para tempos turvos como o que estamos vivendo.

É de posse dessas ferramentas teóricas e, evidentemente em condições de desenvolver novos instrumentos analíticos que temos, por fim, as bases reais de compreensão do que é o trabalho nesta contemporaneidade espantosamente brutalizada e abertamente bárbara para noventa por cento dos seres humanos do planeta e que como se bem sabe, elimina impiedosamente tudo o que resta de natureza, inclusive, de natureza humana.

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Esse movimento é expresso na vida cotidiana. Não precisamos ir para grandes centros, para metrópoles do mundo do capitalismo central para identificarmos essa lógica impiedosa e insolúvel. Está aqui, no dia-a-dia, nos pequenos trabalhos, nos miúdos negócios, nas frações e parcelas de produção.

O trabalho está colapsando em sua totalidade. Não é só porque automatizaram a produção; porque enfiaram máquinas de fio a pavio nos fazeres produtivos; porque a produção agora é uma "info-produção". Antes fosse... O drama é muito maior; de maior envergadura, profundidade e alargamento.

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O que as insaciáveis classes do capital fizeram foi pedagógica e insistentemente descolar o trabalho do trabalhador; a dignidade do trabalhador, seu orgulho e motivo; a crença individual e coletiva de que por meio do trabalho se podia conquistar a vida tudo isso desapareceu. Estas que são dimensões fundamentais para a realização do trabalho já não existem; se tornaram discursos zombeteiros de nenhuma força de convencimento ou unidade; de outra feita não há trabalho que não seja infeliz. Sob as atuais circunstâncias não há trabalho que não seja mágoa, dor, ódio e sofrimento.

Recordemos um pouco mais de Marx quando nos afirma que trabalho "[...] É o processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza". Assim, o homem "põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeças e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana" (MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Ed. civilização brasileira).

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O binômio homem/natureza é desta feita, categoria central para a definição arrasadora de Marx. Trocando em miúdos é homem que transforma natureza e natureza que por sua vez, além de formar também transforma o homem. É bastante curioso mas é, de fato, o que acontece! Com o trabalho, as formas humanas se alteram, se reformam, se transformam. Nada, absolutamente nada escapa dessa integral energia. Nessa fantástica lógica são transformadas também e por conseguinte, as formas convivais deste mesmo homem, sua sociabilidade, sua capacidade de cognição, suas pulsões artísticas, sua sexualidade, as relações estabelecidas em seus grupos, suas formas de ser e estar individual e coletivamente enfim e por fim o trabalho é a dinâmica totalizante e universal do ser e das formas do ser.

O que houve? Houve que na intensificação das atuais formas de acumulação expressas não só nas empresas de alta tecnologia e eficiência mas, principalmente e sobretudo, no invento criminal e estratégico de crises financeiras e globais, dispositivo inexorável de intensificação para o acúmulo de capitais, estratagemas que drenam recursos do mundo inteiro para a mão de meia dúzia de "semideuses" o trabalho, sua anima, sua lógica e sentido de integração e de estabilização sócioprodutiva tão somente desaparece.

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É sútil e sub-reptício mas o trabalhador passa, mesmo sem perceber, a odiar o trabalho; a detesta-lo e criminaliza-lo como sendo o nexo causal da sua miséria e infortúnio eternos: ao fim, o trabalhador está integralmente certo! Sob as regras de um capitalismo monopolista e manipulatorio o trabalho não faz qualquer sentido.

Uso a metáfora do mosaico para tentar explicar! É como admirarmos os vitrais de igrejas cuja arte ainda de feições medievais prevalece. Ao longe identificamos o Cristo, seus discípulos ou a face piedosa de Maria. Vemos perfeitamente bem um Cristo caminhante sobre as águas; o milagre da multiplicação dos pães; as mãos estendidas e os rostos complacentes. As rosáceas de Notre Dame na velha Paris seguem impecáveis e hipnóticas.

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Mas se nos aproximamos um pouco mais da arte expressa identificamos que o mosaico e suas unidades são na delicadeza dos seus interiores, composições de milhões de unidades amorfas, dispersas, deformadas e que não estabelecem qualquer vínculo com as demais. Impressiona! Tempos atrás vi desta mesma modalidade de construção artística em uma mesa muito bem trabalhada, rica em detalhes e acabamentos. Ao analisar as intimidades da obra, de novo, identifiquei milhares e milhares de pequenas pedras de tamanhos, formas e cores variadas e a partir de um olhar mais arguto e apurado, sem nenhuma unidade lógica entre si.

O trabalho se tornou um mosaico. Sua realização está por assim dizer, "mosaicada". Rompeu, liberou-se de si mesmo e padece de carência política, classista, militante e, como deve ser, revolucionária. A baixa qualidade política da ação coletiva da classe dos trabalhadores, sua dispersão para níveis absolutamente originais e todo o quadro social e econômico que esta tragédia implica e engendra são obstruções de ordem universal. O universo está bloqueado e tudo se resume ao movimento mecânico de pedras: sem sentido, arte ou conceito.

Os capitalistas se veem em enorme "mato sem cachorro" e já não sabem como proceder. Já não há mais programa, campanha ou círculo produtivo a ser feito e engrenado; aqui mesmo onde vivo já testemunhei dezenas e dezenas de campanhas que vão dos exercícios físicos laborais passando por gincanas, criação de bibliotecas, rodas de leituras, atividades artísticas, cinemas, cromoterapia nos ambientes de trabalho, jardinagem de frente ao módulo de produção, criação de espaços de recreação, premiações disto e daquilo e até música já estão inserindo nas jornadas de trabalho. O esforço, sempre vão, é o de reconstruir a identidade ou mesmo a unidade trabalho/trabalhador. Os trabalhadores respondem fundo com a maior hibernação social e política desde a fundação do capitalismo como sistema mundial.

O propalado desinteresse pela qualificação profissional é outro sintoma desta ruina, aliás, os empresários são, grosso modo, mais mal qualificados do que os trabalhadores. O tal "Sistema S" já é um arquipélago ocioso ou subaproveitado. Não mobiliza, não arregimenta, não toca ou sensibiliza o trabalhador ou ao menos o que sobrou dele. De outra maneira, os trabalhadores pouco se importam se existem cursos de computação, de eletricidade predial, de relações interpessoais ou de "tecelagem de nuvens" e disponíveis para ele. Eles não se importam! Mas o que houve?

Sob as narrativas moralistas, punitivistas e burguesas das "classes de cima" a fala é antevista: "não querem trabalhar!", "essa gente preguiçosa não quer nada com nada!". É isso? O que tenho ouvido dos gestores e empresários é quase uma profissão de fé, uma doxa ou ladainha e repetida mil vezes para quem sabe, adquirir algum ar de verdade. Mas indago: por que não querem? Queriam antes? O que houve? O trabalho em tempos outros era delicioso e gozoso? Deixou de sê-lo? Por que deixou de sê-lo?

Não é fácil responder a essas questões mas certamente a história, essa boa e velha aliada da economia política séria possa nos dar dicas importantes. Não dá mais para descambar na esparrela fácil e enfadonha de dizer por dizer que "estamos em crise", que "a crise do capital é grave", que é preciso "esperar a crise passar". Nada mais equivocado e desnecessário.

Para bom registro é importante afirmar com todas as letras que crise no capitalismo não é eventualidade; não é algo sazonal como se fora uma revoada de gafanhotos ou lagartixas e que, em dado período do ano, aparecem para devorar lavouras inteiras. Definitivamente não é isso! Capitalismo é crise, vive, se alimenta e retroalimenta de crises, se renova na crise, se reestrutura integralmente na lástima cotidiana de bilhões de seres humanos. Marx acertadamente afirmara que "a luta de classes é o motor da história", de fato essa é verdade incontestável, a crise no entanto é o principal combustível contemporâneo para esse motor operar em ré, em reação e para trás. A crise refunda o capital.

O que se identifica com relativa facilidade é grave e definitiva ruptura afetiva-emocional-sentimental entre o trabalhador e tudo o aquilo que ele faz. É um fazer não-fazedor; é deprimido, infecundo, esterilizado, apático e terminativo. O trabalhador morreu estando vivo; está inerte em atividade; se faz moribundo na produção; decompõe-se e suas partes se perdem na trágica jornada do viver. O homem virou mosaico. Seu rosto, seus sentidos, suas sentimentalidades, seu ser, seu horizonte e seu destino é tão somente, morrer.

Vejamos que o prédio recém inaugurado e que caiu; milhões e milhões de carros que mesmo novos, de repente, carecem do "recall"; pontes inauguradas a pouco e que desabam; milhares que se suicidam ao dia; um fantástico consumo de bebida alcóolica; uma produção oceânica e fabril de antidepressivos; milhões de dólares perdidos com licenças e atestados médicos; a ampliação da mendicância; milhões de divórcios e famílias desfeitas... O trabalho dá o seu recado por dentro da lógica de funcionamento do pior padrão da hegemônica organização capitalista.

O resto... É trabalho morto.

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