O cavalo no xadrez

Trata-se de um animal trancafiado em uma cela; não digo numa sela, mas numa cela. No xilindró, para ser mais preciso

Trata-se de um animal trancafiado em uma cela; não digo numa sela, mas numa cela. No xilindró, para ser mais preciso
Trata-se de um animal trancafiado em uma cela; não digo numa sela, mas numa cela. No xilindró, para ser mais preciso (Foto: Lelê Teles)


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em Aparecida, cidade de Sergipe Del Rey, apareceu um caso curioso.

um cavalo foi visto no xadrez.

ora, mas não existe xadrez sem cavalos, sem torres, sem bispos... dirá o nobre enxadrista.

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sim, é claro que todo tabuleiro de xadrez tem cavalos andando em éle.

isso é certo, mas certamente não é disso que se trata.

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trata-se de um animal trancafiado em uma cela; não digo numa sela, mas numa cela.

no xilindró, para ser mais preciso.

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"cambada, bora pra delegacia! um cavalo deu um coice num carro e foi preso", gritou um moleque no campinho de futebol; e a molecada saiu correndo atrás dele.

"e quem foi o jumento que fez isso?", perguntou o padre da cidade ao tomar conhecimento pelo zap.

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"estão alimentando o quadrúpede, alguém sabe se ele tomou água?", inquietou-se a moça da sociedade protetora dos animais nas redes sociais, com a hashtag #somostodoscavalos.

o assunto tomou a cidade.

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"só no Brasil mesmo, como pode ter lugar na cadeia pra prender cavalo, mas não ter vaga pra confinar bandido?", gritou um bolsominion anabolizado, "por isso sou a favor da privatização das cadeias"; continuou bufando o garotão, equinamente, enquanto se enrolava na bandeira do Brasil.

"oh, que absurdo, um cavalo coiceando um carro, que atraso, que terceiro mundismo, ainda existem cavalos nesse mundo, meu Deus do céu?", disse a socialite para si mesma, enquanto decidia que joia colocar no pescoço.

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cada um dizia sua frase e marchava para a DP.

em pouco tempo, a porta da delegacia estava abarrotada de gente a se acotovelar.

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youtubers mirins e veganos gourmetizados choravam, eco-blogueiros produziam textões cheios de clichês, social medias faziam lives, radialista radiavam aos berros e os jurássicos jornalistas com caneta bic e bloquinho na mão anotavam tudo.

um flanelinha fazia estranhos movimentos com as mãos, organizando o fluxo.

o vendedor de algodão-doce oferecia a iguaria colorida aos presentes, dizendo que cavalo gosta mais de açúcar que de capim, que se estiverem mesmo com pena do animal é comprar o algodão e amaciar a fome do bicho.

com um pau de selfie, um repórter de TV dava as últimas, ao vivo:

"ontem, treze de novembro, acontecia uma cavalgada no interior de Sergipe, os equinos marchavam pelas ruas da cidade, em meio a grande algazarra, agitação e bebedeira. foi aí, talvez levado pelo estresse, que um cavalo desferiu uma patada e acabou por ferir um automóvel".

"como ferir o automóvel?", gritou um ciclista já invadindo a transmissão, "golpistas", ele insistiu, "desumanizaram as pessoas e agora querem humanizar os carros?", questionava para o celular do repórter acuado.

"ele tá certo", cochichou um engravatado no ouvido de um pedinte, "está claro que o delegado tomou as dores do carango".

daqui a pouco a multidão começa a abrir caminho.

rasgando aquele mar de gente - um sol desgraçado no céu - montado num burro qual Jesus no domingo de ramos, chega o dono do cavalo preso.

"uma palavra", diz o repórter; microfones e celulares apontam para sua boca.

"por enquanto, nada a declarar", declara o infeliz tornado em instantânea subcelebridade.

incólume, como quem não deve nada à justiça, o dono do cavalo entra na delegacia levando o burro pelo baraço.

"alto lá", ordena o delegado. "o senhor acha que pode entrar assim, ladeado por um animal, dentro de um prédio público?"

"foi o senhor quem abriu esse precedente", retrucou o cavaleiro, sapiencialmente.

o delegado não lhe deu ouvidos.

"o senhor entra, o burro fica. estávamos a esperá-lo, és o dono daquele escoiceador de veículos, cadê o seu advogado?"

"sim, sou o dono dele, e não preciso de advogados, uma vez que não estou preso nem sou acusado de nada, quem precisa de advogado é o cavalo. esse aqui é o advogado dele", aponta para o asno, "portanto, o burro entra".

entraram.

também, por questões de compadrio, foi permitida a entrada do padre, da madame e do ciclista.

a turba ficou do lado de fora, a fofocar fake news para as redes.

lá dentro, inicia-se o inquérito.

"o único a cometer um crime aqui é o senhor", disse o burro, secamente, ao delegado.

"com mil diabos, nunca vi um burro falar", assustou-se o padre.

o burro sacudiu a cangalha retirando o caçuá de taquara. dali sacou um Vade Mecum e uma Bíblia. abriu o capa preta em Números 22 e mostrou ao religioso a conversa entre Balaão e seu asno.

o papa hóstia recolheu a crina.

"por que o senhor recolheu esse animal?" relinchou burramente o advogado do cavalo.

"ora, ele danificou um bem privado, eu mandei recolhê-lo para que o dono viesse buscá-lo e eu trancafiá-lo no lugar do quatro patas. sim, era uma arapuca."

o burro bufou, chacoalhou as gengivas, sacudiu o rabo e prosseguiu, resiliente:

"mas isso fere o princípio da responsabilidade pessoal, doutor delegado, tá aqui na Constituição Federal, artigo quinto, nenhuma pena pode passar da pessoa do condenado".

o delegado coça a cabeça e olha para o escrivão, este desvia o olhar e finge mexer no smartphone. sozinho na besteira que fez, ele tenta se explicar:

"acontece que não há princípio de responsabilidade pessoal aqui porque, mesmo sendo um burro o senhor sabe, cavalo não é pessoa..."

"se não é pessoa", relinchou o burro, "como pode estar preso? aqui se prende ideias, objetos, animais... o que mais? se cadeia não é lugar para animais e o senhor, mesmo assim, trancafiou um animal na cadeia, sinto muito dizê-lo, mas o senhor cometeu um crime de improbidade administrativa, uma vez que deu ao espaço público uma finalidade que não lhe é inerente".

"mas esse burro de burro não tem nada", observou a dondoca, sacudindo as pulseiras douradas.

o jovem ciclista, filho do prefeito derrotado na eleição passada, aproveitou o ensejo para passar um pito no delegado:

"isso mostra o despreparo dessa polícia, tratava-se de uma cavalgada, seu delega. isso significa que as ruas, nesse momento, eram dos cavalos. o carro, não importa quantos cavalos tenha no motor, é que estava no local inadequado. foi ele quem feriu a pata do cavalo ao ser escoiceado. fosse uma carreata a culpa seria do cavalo. como o senhor sabe, o mundo não é dos automóveis..."

"ordem", gritou o delegado, "isso aqui não é lugar para discursos nem comícios".

mas o padre também queria discursar.

invocando São Francisco de Assis, o da batina falou sobre o amor que devemos aos animais e disse querer ir à cela estar com equino e, em um lance hipócrita e dramático, se ofereceu para ficar no lugar do animal:

"em nome do Nosso Senhor Jesus Cristo, senhor delegado, eu lhe imploro: liberte esse animal e prenda-me em seu lugar. não há naquela cela espaço suficiente para ele se locomover, nem cocho, nem feno, nem nada."

ao ouvir isso, o burro, ajeitando os óculos, leu em voz alta outra infração cometida pelo homem da lei:

"é considerado crime praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. pena: detenção de três meses a um ano, e multa..."

lá fora, chegavam informações sobre a refrega jurídica, enviadas pelo zap da madame, do biker e do batina.

"o burro é adevogado", gritou o dono da budega da esquina.

"antes um burro adevogado que um adevogado burro", respondeu sua concorrente, dou outro lado da rua.

"eu sabia que esse cavalo tinha as costas quentes", cochichou o pedinte ao engravatado, "ele passa o dia inteiro no sol".

"vamos acabar logo com esse sofrimento", bradou um jovem barbudo e mal vestido, "invadamos a cadeia e resgatemos esse animal."

gritos, urros e ranger de dentes.

a massa já forçava o portão de ferro quando chegou o choque. dando tiros de pistola de choque na moçada e atirando uma bomba de gás lacrimogêneo dentro da delegacia.

o carcereiro, asmático, desmaiou com a asfixia; as chaves na cinta.

a madame protegeu boca e olhos com um lenço de seda, o ciclista rastejou até o carcereiro.

o padre se benzia.

mais um bomba é atirada para dentro da delegacia.

jatos d'água e bala de borracha dispersam a multidão.

um corre corre desordenado, pandemônio, diria o padre se pudesse falar naquele momento.

quando a fumaça baixou e o choque entrou na delegacia, estavam atirados ao solo, o burro, o delegado, a madame, o padre, o ciclista e o carcereiro.

o cavalo, confinado no calor do cubículo quente, não resistiu à overdose de gás.

sua morte foi como um coice em toda a sociedade.

ergueram a ele uma estátua na cidade, com as patas dianteiras para o alto, imponente.

o delegado virou uma nota de rodapé na história, lê-se no wikileaks: "delegado de polícia, prendeu um cavalo, foi desmoralizado por um burro e é tido na sociedade como uma besta."

palavras sapienciais.

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