Na falta de crime, o STF pode barrar o golpe

"Dilma não tem conta na Suíça, não tem apartamento na chique Avenue Foch, não tem aeroporto em propriedade particular, não tem dinheiro sonegado, não tem patrimônio suspeito, não desviou nada, como muitos dos golpistas. Não está na lista da Odebrecht, como boa parte dos golpistas", diz o colunista Marcelo Zero; "No caso do processo acolhido por Eduardo Cunha, em ato claro de vingança política, a desculpa são as tais 'pedaladas fiscais'. Mas pedalada fiscal é crime de responsabilidade? Não, não é", afirma; portanto, ele afirma que cabe provocar o Supremo Tribunal Federal, uma vez que um impeachment sem crime de responsabilidade seria flagrantemente ilegal, como já apontaram diversos juristas

Presidente Dilma Rousseff durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto, em Brasília. 07/12/2015 REUTERS/Ueslei Marcelino
Presidente Dilma Rousseff durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto, em Brasília. 07/12/2015 REUTERS/Ueslei Marcelino (Foto: Marcelo Zero)


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Na ópera-bufa em que se transformou o processo de golpe contra Dilma Rousseff, há uma fauna bastante diversificada: procuradores sem um mínimo de isenção, juízes que se colocam acima da lei, mídia que mente, distorce e divulga grampos ilegais, políticos sujos gritando contra a corrupção e numerosa matilha fascistoide de adoradores do ódio e das ditaduras. Tudo isso conduzido pelo maestro das partituras hondurenhas e das contas suíças.

Falta, contudo, o personagem principal: o crime.

Com efeito, a Constituição, em seus artigos 85 e 86, determina que o Presidente da República só pode ser afastado após comprovação de crime de responsabilidade. Portanto, a opera bufa do impeachment contra Dilma só poderia ser encenada com o crime de responsabilidade como personagem principal.

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Mas, cadê o crime? Será ele invisível? Estará escondido nas sombrias coxias da Presidência da Câmara?

Parece que muitos consideram esse mandamento constitucional mero detalhe.  Com efeito, o que se vê no Congresso Nacional e nas ruas são argumentos meramente políticos.

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 “O Brasil não aguenta mais a crise”. “Dilma tem de se afastar para que o Brasil volte a crescer”. “As ruas exigem o impeachment”. “A presidenta não tem popularidade e credibilidade”, etc. Todos esses “argumentos” seriam até aceitáveis no parlamentarismo, regime no qual a autoridade do chefe de governo deriva do Parlamento. Nesses regimes, é de fato legítimo e legal que o chefe de governo seja afastado devido a crises políticas ou econômicas, mediante mero voto ou moção de desconfiança. No regime presidencialista não. Nesse regime, a autoridade do chefe de governo deriva diretamente da vontade popular expressa nas urnas. Ele é titular de um dos poderes da República e, como tal, só pode ser deposto por outro poder (o Congresso), após comprovação de crime.

Ora, crise não é crime, baixa popularidade não é crime. Erros políticos ou administrativos não são crimes.

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Dilma não tem conta na Suíça, não tem apartamento na chique Avenue Foch, não tem aeroporto em propriedade particular, não tem dinheiro sonegado, não tem patrimônio suspeito, não desviou nada, como muitos dos golpistas. Não está na lista da Odebrecht, como boa parte dos golpistas. Mesmo políticos da oposição, como FHC, consideram que Dilma é honesta. Honesta não apenas pessoalmente, mas também na função pública. Foram ela e Lula que permitiram, pelo fortalecimento e a independência das instituições de controle, que a corrupção passasse a ser combatida a sério no país. A Lava Jato teria sido impossível no governo FHC.

Restam, então, os truques, as pedaladas jurídicas para tentar justificar o injustificável.

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No caso do processo acolhido por Eduardo Cunha, em ato claro de vingança política, a desculpa são as tais “pedaladas fiscais”.

Mas pedalada fiscal é crime de responsabilidade?

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Não, não é.

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que só pode ser considerado “crime de responsabilidade” aquilo que está estritamente previsto na Constituição e na Lei nº 1079/50 (Lei do Impeachment), a qual regulamenta o processo de afastamento do Presidente da República.

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Impeachment é matéria penal e, como tal, só se admite como crime de responsabilidade aquilo que a lei literalmente especifica. Não existe “crime por analogia” e não se pode ampliar o escopo da lei ao gosto da vontade política dos agentes envolvidos no processo. Só é punível como crime aquilo que a lei explícita e estritamente determina como tal.  O próprio STF tem esse entendimento a respeito dos crimes de responsabilidade. No caso brasileiro, o artigo 85 da Constituição remete à lei (a Lei do Impeachment) a caracterização dos crimes de responsabilidade.  Portanto, só vale o que está escrito na Constituição e na Lei do Impeachment. O resto é fruto das expectativas partidárias de golpistas.

Em segundo lugar, não existe julgamento meramente político do Presidente da República. Julgamentos meramente políticos só existem em ditaduras. Assim, o impeachment não pode ser equiparado aos julgamentos que Stalin costumava fazer. Numa democracia, o julgamento tem de respeitar princípios básicos do Estado Democrático de Direito, como o do devido processo legal e o da presunção da inocência.

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Dito isto, é preciso enfatizar que, no caso do pedido de impeachment acolhido por nosso homem na Suíça, não há nenhuma sustentação jurídica consistente.

O que se alega é que as tais pedaladas fiscais seriam operações de crédito que a União teria contraído com bancos públicos, algo que é vedado na lei orçamentária.

Ora, a Lei do Impeachment, que rege todo o processo, fixa como crime de responsabilidade estritamente a realização de operações de créditos com entes federativos (art. 10, n. 9). Entes federados são os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Bancos públicos não são entes federados. Mesmo que a Lei de Responsabilidade Fiscal permita tal equiparação, a lei orçamentária e a Lei do Impeachment, cuja violação seria crime de responsabilidade, não o permitem.

Mas o contra-argumento principal não é esse. A questão central é que as tais pedaladas não são operações de crédito. Aliás, o TCU confessa que considera as pedaladas como operações que se assemelham, por mera analogia, a operações de crédito. Portanto, o próprio TCU admite que as pedaladas não são operações de crédito.

As tais pedaladas são não mais que atrasos no repasse do Tesouro a bancos públicos encarregados da operação financeira de alguns programas. Em  lato sensu, pode-se até argumentar que isso gera algum tipo de crédito com o banco público. Mas isso não é uma operação de crédito. A operação de crédito implicaria alguns requisitos, como a prévia autorização orçamentária, a necessidade de lei específica e o controle exercido pelo Senado Federal. Assim, não se pode confundir operação de crédito com o surgimento de um crédito, em sentido amplo, decorrente de um atraso, de um inadimplemento contratual, os quais não estão submetidos às mesmas restrições legais.

Mutatis mutandis, seria a mesma coisa que se dizer que, se ao se atrasar o pagamento de seu aluguel, o locatário estaria fazendo, ipso facto, uma operação de crédito, um contrato de crédito, com o locador.  

Há ainda o imbróglio dos famosos “decretos não-numerados”. Alega-se que tais decretos teriam aberto créditos extraordinários incompatíveis com a lei orçamentária, algo que a denúncia afirma ser enquadrável no crime de responsabilidade previsto no art. 10, n. 6 da Lei do Impeachment.

Ora, essa denúncia é totalmente inepta. Tais decretos, prática comum em muitas gestões orçamentárias, foram recepcionados pela ratificação de Lei aprovada pelo próprio Congresso Nacional. Com efeito, a aprovação do PROJETO DE LEI DO CONGRESSO NACIONAL nº 5, de 2015, que diminuiu a meta do superávit primário e permitiu sua redução em razão da frustração de receitas, acolheu todos esses decretos tornando-os, assim, inteiramente legais. Por conseguinte, se o Congresso Nacional considerar tais decretos como crime de responsabilidade estará admitindo, automaticamente, que é coautor do crime.

De mais a mais, é preciso considerar que as pedaladas são prática comum na administração pública brasileira, da União e dos entes federados, há muitos anos; e sempre tinham contado com a pronta aprovação do TCU. A mudança casuística de interpretação recente obedeceu à simples necessidade política de tentar dar algum sustentáculo ao golpe. Obviamente, o TCU pode mudar de interpretação, ainda que seja por motivos políticos. Mas tal mudança só pode valer para gestões futuras. Nunca retroagir para tentar gerar, de forma canhestra e oportunista, aparência de legalidade a um golpe de Estado. Considere-se, ademais, que quem julga as contas da União é o Congresso, não o TCU.

Dessa forma, não há base jurídica nenhuma para sustentar que a presidenta cometeu crime.

Espreme-se toda a denúncia que está na Câmara e a única verdade que surge é esta: o governo de Dilma Rousseff atrasou alguns pagamentos a bancos públicos para não deixar faltar comida na casa dos brasileiros mais pobres. Isso é desvio? Isso é corrupção? Isso é crime?

O mesmo vale para Lula. Espremem-se meses, anos de investigação, espremem-se as ilegalidades de um juiz que se colocou acima da lei, espreme-se toda a fúria obsessiva para achar qualquer crime e as únicas coisas que surgem são pedalinhos, um barco de lata, um sítio de um amigo e um apartamento que nem foi comprado.

Trata-se de uma situação diametralmente oposta à de Collor, pois, naquele caso, havia na denúncia apresentada farta evidência de desvios e corrupção.

No fundo, o que se tenta fazer é sacrificar a presidenta sabidamente honesta para salvar os que sabidamente frequentam listas das empreiteiras que estão sendo investigadas na Lava Jato.

O fato concreto, definitivo, é que na ópera-bufa do golpe falta o crime que justifique o enredo giocoso

E, na falta de crime, cabem não apenas a manifestação dos que apoiam a legalidade democrática e o crescente protesto da comunidade internacional contra o golpe. Cabe também a manifestação do STF.

Como já afirmaram Marcello Gallupo e vários outros juristas, a decretação de impeachment sem a comprovação de que o Presidente da República cometeu crime de responsabilidade previsto explicitamente na Lei do Impeachment seria algo fragrantemente inconstitucional. Na condição de guardião da Constituição, o STF tem o dever “de barrar ou declarar a nulidade de qualquer impeachment recebido pela Câmara ou decretado pelo Senado, caso inexista conduta hipoteticamente subsumível nas taxativas previsões legais que tipificam os crimes de responsabilidade”.

Afinal, o que está em jogo aqui não é simplesmente o futuro do governo ou do projeto político que tirou 36 milhões de brasileiros da miséria e colocou outros 42 milhões na classe média. O que está em jogo é a democracia, o Estado Democrático de Direito e os direitos e garantias fundamentais que protegem a todos.

No plano interno, o golpe criaria uma fratura política que geraria crise permanente e assestaria duro golpe em nossas instituições democráticas. No plano externo, nos faria retroceder à ridícula condição de republiqueta de bananas. Mais: um golpe contra a presidenta honesta conduzido por Eduardo Cunha nos converteria na piada internacional do século. Tipo: sabe a última do brasileiro?

Ninguém pode se omitir neste momento crítico e o julgamento definitivo, o julgamento da História, será terrível contra aqueles que afrontarem a democracia e a Constituição.

Se gostas de ópera cômica, ouça as de Mozart. A de Eduardo Cunha et caterva é muito ruim. É golpe.

 

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