Norberto Elias e Engels na crise britânica

Nestas crises, quem sempre mais perde são os assalariados, as pessoas de baixa renda, os pequenos e médios negócios, que geram a maioria dos empregos

Nestas crises, quem sempre mais perde são os assalariados, as pessoas de baixa renda, os pequenos e médios negócios, que geram a maioria dos empregos
Nestas crises, quem sempre mais perde são os assalariados, as pessoas de baixa renda, os pequenos e médios negócios, que geram a maioria dos empregos (Foto: Tarso Genro)


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Apreciar o livro de Norberto Elias, “A sociedade dos indivíduos”, independe da concordância com as suas ideias centrais. Elias é, na verdade, um “filósofo da sociologia” e um intérprete do nosso tempo, que dialoga conosco para entender o que chama de “processo civilizador”. Para ele, o fato da “autorregulação” das pessoas, “na sua relação com os outros seres e coisas (…) não ser bloqueado por reflexos e automatismos inatos” (como digerir e respirar), é o que possibilita este “processo civilizador”. Esta “autorregulação” permite, através da razão -por exemplo-  refrear instintos e moderar atitudes nas adversidades. 

A crítica de Elias a uma certa posição em sociologia, que defende que as sociedades “não são visíveis”, somente os indivíduos o são (por isso as sociedades são incognoscíveis), tem extrema atualidade nesta época que nos toca viver. Hoje, por exemplo, é possível dizer que temos ferramentas de conhecimento que permitem “conhecer”, na sociedade, o erguimento de uma espécie de “segunda natureza”, perante os humanos, que reduz a sua capacidade de regularem-se. Esta “segunda natureza” é mercado, que ao invés de ser socialmente regulado, impõe-se coercitivamente sobre os Estados e as Constituições, pela pura força das suas necessidades de acumulação. Como a comunidade política não regula o mercado financeiro e o põe a serviço do conjunto da sociedade, este “regula” o Estado e a Política pondo-os a seu serviço..
 
Aquilo que Lukács chamou de “afastamento das barreiras naturais” – controle dos humanos sobre a natureza –  que Elias designa como “crescente mudança nas relações entre os seres humanos e as forças naturais extra-humanas”, deixa de ser uma escolha de indivíduos isolados e torna-se comportamento social comum. Amparar uma pessoa com limitações físicas para subir uma escada, ser solidário com um vizinho que adoeceu, saciar a fome de um faminto, são atos cotidianos do “processo civilizador”, autorregulados, que se tornam comportamentos sociais ordinários.  Assim, os humanos vão realizando movimentos encadeados, que compõem um determinado estágio “social” civilizatório.
 
As consequências do aproveitamento do vapor para gerar energia e a construção das hidrelétricas modernas -por exemplo- geraram resultados que envolvem até hoje milhões de indivíduos: os modos de vida, a sua forma de produzir e fruir os bens e a cultura, deixam de ser escolhas isoladas e, em regra, passam a ser socialmente determinadas. Abrem, por isso, às pessoas novos momentos de “autorregulação”.
 
O surgimento da política entre os humanos, como mediação da vontade de dominar, de libertar-se, de organizar procedimentos comuns -“o bem comum”- é o mais complexo movimento que se origina desta “autorregulação”. É um processo pensado, superior aos meros instintos de sobrevivência, para enfrentar a superioridade supostamente “natural”, que alguns grupos de pessoas exercem sobre as outras, seja por serem mais fortes fisicamente, seja por serem mais convincentes para liderar, seja -nas sociedades mais complexas- por serem mais ricas em bens materiais, para organizar exércitos e ocupar espaços “vitais”, formar e dominar Estados.
 
Com a formação dos estados nacionais modernos, o “nacionalismo” apresentou uma dupla face: uma face agressiva brutal, de supressão do “outro” nacional, para submetê-lo e subordiná-lo, e uma outra face -democrática e patriótica- que expressava e expressa a vontade de deixar de ser “colônia”, para formar uma nação soberana. A primeira face estabelece, internamente ao país agressor  -como na Alemanha nazista-, o mito da superioridade “natural” de povos e nações eleitas sobre outras. A segunda face deste nacionalismo moderno instituiu a vontade revolucionária nacional-democrática de libertação, como fizeram -por exemplo-  o Vietnam, as hoje ex-colônias portuguesas e a Argélia.
 
Este mito da superioridade nacional não se expressou, originariamente, somente a partir da direita fascista. Engels, por exemplo, num artigo publicado na “Neue Rheinische Zeitung” -se não me equivoco no mesmo ano que era publicado o Manifesto Comunista (1848)-  ao avaliar “o direito com que a França tomou Flandres, e vai tomar a Bélgica mais cedo ou mais tarde” (…) constata o “direito da civilização contra o barbarismo, do progresso contra a estagnação”. Isso Engels escreve depois de considerar os eslavos como “povos sem história” ou “a-históricos”.
 
Trata-se de uma infeliz mistura do cientificismo positivista naturalista, que percorre algumas fórmulas de Engels, com o materialismo histórico de corte classista, adequado para a anatomia da sociedade de classes no capitalismo. Deste pensamento engelsiano é que se formou a vertente teórica, de uma parte do movimento comunista, que se baseava na “fatalidade histórica do socialismo”, como ponto-de-vista científico aplicável, controlado por uma burocracia estatal, avesso à visão de que o socialismo só pode ser uma construção consciente. Uma opção dos humanos, que revoluciona tanto as relações destes com a naturalidade, como transforma –progressivamente- as consciências egoístas do individualismo em consciências solidárias autorreguladas.
 
Entendo que a formação da União Europeia, mesmo sendo nitidamente um movimento de integração “por cima” -a partir dos interesses comandados pelas grandes empresas e bancos continentais- traz consigo a possibilidade de unificação “por baixo”, entre aqueles setores, estamentos e classes, cujas relações de solidariedade “autorregulada” pode se tornar “grande política” -com a Europa Social- a única que pode dar estabilidade e convivência democrática ao Continente. Suponho que a exclusão de países ricos, desta integração, fragiliza mais este movimento “na base”,  do que corrige a integração projetada na cúpula. Trata-se de um movimento nacionalista agressivo, que se expressa pela omissão, para uma relação comum, entre as nações capitalistas da Europa, porque não aceita como iguais os pobres, que necessariamente vem junto com a integração pela cúpula.
 
Recentemente manifestei a minha inconformidade – que não tem a menor importância obviamente – à recusa do Reino Unido em permanecer na União Europeia. Tomei esta posição entendendo que tal recusa – se mantida –  vai influir negativamente na economia mundial. Tantos nos países mais desenvolvidos da UE (que perdem um parceiro rico) -cujas classes dominantes passarão esta conta para as famílias mais pobres dos seus respectivos países-  como terá influências dramáticas, nos países mais pobres do mundo, que pagarão juros ainda mais elevados, das suas dívidas já impagáveis, espaço para os quais os bancos transferem e compensam as suas perdas. A nova situação de enfraquecimento da União Europeia também reforça, não debilita, a hegemonia militar, financeira e política americana. E vai gerar, igualmente, novos desequilíbrios no comércio internacional e novos bloqueios ao conjunto de conquistas socialdemocratas das classes trabalhadoras do mundo. Não nos esqueçamos, ainda, que a economia americana, que já conta com 50 milhões de pobres, só se recupera com base no trabalho precário, na meia jornada, nas terceirizações selvagens, no trabalho intermitente, no aumento da pobreza e na indústria da guerra, modelo que eles querem transferir para a Europa e para o mundo todo. É Chomsky, Piketty, Bernie Sanders, que falam isso, não este escriba estadual.
 
Nestas crises, quem sempre mais perde -em cada país- são os assalariados, as pessoas de baixa renda, os pequenos e médios negócios, que geram a maioria dos empregos. Algumas pessoas me responderam que à longo prazo isso é ” bom”, pois a crise social que advirá, vai causar a longo prazo uma nova revolução na Europa. Respondo que as pessoas vivem, as crianças morrem, os aposentados se suicidam, o terrorismo aumenta, no curto, não no longo prazo. E que da miséria e da pobreza -numa época que carece de paradigmas para montar ordens mais justas- tem nascido rebeliões sem rumo, não revoluções libertárias.
 
A lógica da guerra econômica e política, que parece se insinuar no xadrez europeu está presente na perda da “autorregulação” dos indivíduos que, sucumbindo ao nacionalismo isolacionista, se recusam a interferir no “processo civilizador”, para reafirmar a Europa Social perante a Europa do Capital. Esta perda -que leva ao “estado natural” de rejeição do diferente- (na reflexão aberta por Elias), se ainda não tem um corte nacionalista fascista, abre tragicamente esta possibilidade.
 
É verdade que a sra. Merkel -conservadora que faz a pauta da União Europeia- não gostou. Mas é verdade, também, que Donald Trump adorou a decisão. E que a primeira, a sra. Merkel, enfrentou a extrema direita alemã para receber milhares de refugiados dos países árabes e o segundo, Donald Trump, quer construir um muro de cimento e ferro, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Como se vê, neste caso, não se trata da velha polêmica entre esquerda e direita, diretamente vinculada à luta de classes, mas de uma nova polêmica na crise civilizatória, entre, o que é esquerda e democracia nesta conjuntura, e o que é fascismo e rejeição do diferente, em ascensão como símbolo barbárie.
 
O reflexo no nosso país se fará sentir de maneira ainda mais brutal, com a natureza do ajuste, já definido com a PEC-Meireles, que congela o orçamento da União por dez anos. Nele, obviamente, o percentual que os juros ocupam na estrutura orçamentária não é, evidentemente, congelado. Isso implica em dizer que a dívida comanda o Estado e que a “autorregulação”, expressa pela política na gestão pública, fica suprimida por um longo prazo, para a  tranquilidade exclusiva dos credores.
 
Na verdade, a PEC-Meirelles é um processo constituinte obtido pela “exceção” não declarada, que passa a ser juridicamente formalizada. Este processo revoga por inteiro -por dez anos pelo menos –  todos os fundamentos e obrigações sociais da Constituição de 88. É a consagração do golpe que colocou no Governo, através de um Congresso de maioria suspeita, uma Confederação de investigados e denunciados. Resistiremos?
 
Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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