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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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A China para os socialistas do Brasil

Nestes dias, quando o povo chinês enfrenta o mal do coronavírus, escrevi um texto. Então, extraio de “A mais longa duração da juventude” um trecho que reflete a China e os socialistas brasileiros em outra luta. Do romance, recupero estas linhas

(Foto: Richard Sharrocks)
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Nestes dias, quando o povo chinês enfrenta o mal do coronavírus, escrevi um texto que ainda não posso divulgar. Então, extraio de “A mais longa duração da juventude” um trecho que reflete a China e os socialistas brasileiros em outra luta. Do romance, recupero estas linhas:  

“Quantas vidas um homem tem para viver? Uma, duas, três, mil? Aqui expresso mais uma vez que a vida ou a trajetória de um homem nada tem a ver com a contagem física dos anos. Nem uma só pessoa tem a vida média de 80 ou 90 anos. Acreditar nesses números é tão míope, quanto, digamos, pouco inteligente. Quando fecho os olhos e recordo, descubro que todos temos seis, sete ou oito vidas. Até mesmo os que trilhamos o tempo no mesmo lugar, cercado pelas mesmas pessoas, se isso for possível. Então penso que em uma de nossas vidas, naquela noite na Encruzilhada, quando entramos em um bar próximo a uma parada de ônibus, popular, quase infecto, e nós nem sentíamos o mau cheiro, tão felizes estávamos, ali, quando o melhor prato era mão de vaca. Mesmo quente, sobrenadava nela a gordura. Mas para que diabo queríamos comer? Em 1972, quando vencemos o desemprego, a nossa fome era de cerveja e música. A nossa vida, para a qual daríamos a última gota de sangue, era para a revolução e o sexo, nessa ordem. Mas o sexo, que sonhávamos ter, possuía mais distância que a revolução. A Terra subvertida era ali, para já, estava em pleno curso na guerra do Vietnã, em Cuba havia sido uma vitória, e Mao, o gigante Mao, na China realizava a maior construção socialista. No Brasil, era um processo que levaria no máximo uns três anos. Zacarelli nos afirmava, em contida ponderação: 

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- A ditadura está em crise. O imperialismo recebe derrotas em todas as frentes. E no Brasil, as massas vão se levantar, não demora. 

Zacarelli não vacilava nem tremia a voz ao se expor assim tão peremptório. Ele falava um sentimento dominante. Os que duvidávamos do acerto, ficávamos incapazes de ir contra a humana esperança, porque toda história estava do nosso lado. Então cantávamos, a competir no volume com a vitrola wurlitzer: “we all live in a yellow submarine, yellow submarine”. E repetíamos a ficha na vitrola. 

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Passo os olhos em volta na lembrança e só vejo a Wurlitzer, Narinha, Zacarelli e Alberto. É como se não houvesse outras mesas, lugar e pessoas. Havia imagens apagadas e distantes, porque estávamos em nossa própria nave amarela. E batíamos com as mãos e os pés que we all live in a yellow submarine. O nosso submarino eram as cervejas, os ouvidos e o sentimento. O mundo estava a um sopro de ser construído por nós. O sentimento de criação vinha do grupo – como era bom criar num coletivo, lembro -, a luz se fazia de nossas mãos e fraternidade. Em vez do cotidiano que vivíamos arrastados, do desprezo que nos lançavam, porque nos julgavam como jovens aéreos que não sabiam o conceito do mundo, ou seja, não sabíamos como trair, puxar o saco, falar sobre carro e mulher que só servia para o sexo, porque nem sequer sabíamos – ó suprema abjeção – saudar o presidente Médici, em lugar do nada que julgavam ser a nossa essência, em lugar do vácuo da simulação de bonecos, de joguetes de uma ordem que nos marginalizava, ali, em vez da infâmia que nos anulava, ali nós éramos os protagonistas, criadores do mundo que era um barro informe. Que felicidade, calor agradável no peito vinha da cerveja e do que podíamos fazer noite adentro. 

Escrevendo agora, reflito e fico navegando no que víamos. Meu Deus, essa é uma realidade melhor vivida que narrada. A vontade que tenho é de largar tudo, me levantar da mesa onde escrevo e sair a caminhar pela praia sem rumo. Com a cara virada para o mar tenho vontade, para que não vejam meus olhos úmidos. Eu quero estar com esses marginais como antes, ou na compensação precária da lembrança. E paro e saio. 

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Volto dois dias depois. Estive com eles nas últimas 48 horas enquanto fazia de conta que me achava no estádio de futebol, ou lia, ou conversava assuntos vários pra me distrair de mim. Mas estavam comigo, na mente e espírito. Então volto a eles, a esses companheiros à beira da felicidade e do abismo. 

Na longa noite do bar da Encruzilhada, sopramos e mundo e nele plantamos o nosso ânimo. A nossa alma conforme o desejo. 

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- Meus amigos – fala Zacarelli -, que forças extraordinárias vão se levantar da humanidade. 

A vitrola wurlitzer perto estronda. Nesse barulho podemos falar tudo, ou quase tudo, sem medo de que sejamos ouvidos, sequer pela mesa vizinha onde pode estar um policial. 

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- O gigante da China já se levantou e anda – digo. Ainda que uma voz do diabo me sussurre “para onde?”, eu não o escuto, porque o maior diabo agora é a revolução chinesa. Ela vai nos redimir da desgraça em que vivemos. 

- É claro - fala Alberto. – Mao é um pensador muito bom. 

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- Ele é um gênio, bicho – acrescenta Zacarelli. - O nível de Mao é o de Lênin. Não tanto pela contribuição à teoria marxista. 

- E por que não? – Alberto pergunta. – Você já leu um texto dele chamado “Sobre a contradição”? 

- Sim, claro – responde Zacarelli. – Olha, eu digo assim... como gênio prático, Mao é mais prático, entende?”

E a discussão seguiu noite adentro. A China era ali. A China é aqui entre os socialistas.  

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