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Lelê Teles

Jornalista, publicitário e roteirista

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A impunidade do rebanho

A impunidade de rebanho nos mostra que o expediente é perigoso, um criminoso que não é punido se sente estimulado a criminar, uma vez que impunitas peccandi illecebra, a impunidade estimula a delinquência

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Estúdio.

“O Brasil, finalmente, atingiu a impunidade de rebanho”, comemorou o âncora do jornal irracional, dizendo que tornou-se dispensável a vacina contra crimes de colarinho branco.

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“Depois de os tucanos - aves ávidas e aécicas -, gozarem de décadas de impunidade, mamatas e passapanismos, agora são bípedes implumes os beneficiados; o gado mocho, uma espécie de bumba meu boi verdeamarelo, bate os cascos e muge de felicidade no cercadinho do palácio do crepúsculo”, mancheteou o gravata, chamando para a matéria.

O editor corta para Brasília.

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Às portas da casa da mãe joana, a jornalista, que só mostrava as sobrancelhas e os olhos, esbaforia por trás da máscara:

“Quase setenta pedidos de impeachment movidos contra o inquilino deste palácio - todos por crime de responsabilidade -, foram reciclados e convertidos em almofadas para a buzanfa do macho branco que preside a câmara”.

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Entra um meme do rei arthur sentado numa pilha de papeis e os números do impunômetro, mostrando a marca histórica dos brasileiros impunizados: machos brancos, moralistas sem moral, agrotrambiqueiros e toda sorte de ecocidas, mulheres machistas, enfim, pessoas de bens.

Corta para outra externa.

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Praça dos três poderes. Agora, um jornalista jovem e emascarado, sentado no colo da estátua da justiça e tendo o palacete do STF ao fundo, fala sobre o conteúdo escandaloso de algumas mensagens trocadas por homens e mulheres da lei.

“Parece que andaram espargindo perdigotos pelas altas cortes e varas do país e a impunidade de rebanho alcança, também, os bumbas meu boi togados. mensagens trocadas pelo pessoal do primeiro comando de curitiba revelam conduta criminosa dos servidores públicos: procuradores que procuram um juiz como um cão procura seu dono, conluio ilegal com autoridades das estranjas, juiz que orienta o ministério público... tudo a serviço de um projeto político. como diria o sapiente mestre cafuna, ou se coloca uma venda na justiça, ou se coloca a justiça à venda”.

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O repórter termina a frase e entra um insert com imagens de sara winter soltando foguetes no palacete da injustiça.

Volta pro estúdio e mister cloroquiner, um macho branco, de jaleco alvo com crédito de “especialista em impunidade de rebanho” explica a situação:

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“O que a lavajato buscava, como fica claro nas mensagens, era otimizar o processo de impunidade de rebanho, ampliando e acelerando o contágio”, explicou e prosseguiu:

“Por isso, foram expostos aos patógenos criminantes, ministros, juízes, procuradores, promotores, advogados, rábulas e estagiários da justiça.”

Para ilustrar a fala do especialista, o editor solta um vídeo antigo em que um deputado faz uma analogia ludopédica entre um árbitro arbitrário da justiça e um juiz ladrão: o juizeco justiceiro seria o árbitro que, malandramente, marcaria um suspeitíssimo pênalti sem falta, expulsaria o goleiro adversário para facilitar a vida do atacante, comemoraria o gol com a torcida e, no dia seguinte, tiraria a farda de árbitro e vestiria o paletó com gravata borboleta da diretoria do time que ajudou canalhamente.

Tudo feito ao arrepio da lei, às escâncaras.

Volta pro estúdio e a jornalista capivara faz um comentário sobre os filhos do presidente, sujeitos envolvidos em falcatruas, livres, leves e soltos, por contarem com o recurso da imunidade pra lamentar; capivara também fala sobre um avião que caiu com um juiz e uma massagista às vésperas de uma importante decisão que seria tomada pelo togado.

Ninguém foi punido, ela arremata.

Estabeleceu-se um debate e, por analogia aérea, ventilaram infos sobre os casos do helicoca mineiro e do avião brasiliense que fazia parte da comitiva presidencial e que voava para as estranjas recheado de cocaína.

Os chefões, como se sabe, permanecem impunes; gracejou a capivara do rabo preso.

Chamaram para os comerciais e eu, ao invés de beber uma água, engoli seco.

Com mil diabos, disse de mim para mim, vendo a reportagem fica claro que a impunidade de rebanho se mostra eficaz porque o patógeno criminante se espalha por contágio.

Lembrei-me dos casos recentes de ecocídios provocados por queimadas criminosas no pantanal, na amazônia e no cerrado, promovidas por capangas, grileiros, garimpeiros e agrotrambiqueiros, poluindo rios, devastando a mata virgem, sufocando animais e enchendo de bala índios, pesquisadores e defensores da natureza.

O ministro do meio ambiente não apenas não exigiu punição aos incendiários, como os levou à capital federal a bordo de um avião da fab, impunes.

Você sabe, no campo, o macho branco ainda manda e desmanda, mata e desmata, crimina e ninguém o incrimina.

Entra uma vinheta e o jornal está de volta.

No estúdio, o âncora, provocando os convidados, lembrou dos casos dos padres pedófilos que seguem sem ser incomodados, da lavagem de dinheiro na pia batismal que nunca é investigada, falou sobre a atividade criminosa de pastores/charlatães que vendem placebos, de um outro enganador que vendia semente de feijão contra a covid e da pastora que é acusada de mandar assassinar o marido e segue pastoreando e deputando como se nada fosse com ela.

“Assim, chegamos à marca tão sonhada,  a impunidade de rebanho atinge a justiça, a política e a religião do estado, que é o cristianismo empresarial”, finalizou a jornalista que ladeava o colega de ancoragem.

Sorrisos, aplausos, vinheta final e chamam para uma treta de preta que tá rolando no bebebê.

Pego o celular e faço uma chamada de vídeo para o meu amigo asceta, o cacique papaku.

“Papaku, acabei de ver uma intrigante reportagem. man, como um país que até ontem era punitivista ao extremo, que tem a terceira maior população carcerária do planeta terra, pode atingir uma impunidade de rebanho.”

“O fenômeno é antigo”, respondeu o sábio de penachos, “e brasileiríssimo como um jabuti comendo jabuticaba”.

O imberbe silvícola explicou-me que o fenômeno da impunidade nasce junto com o brasil, e que paralelo a isso, grassava um fenomenal punitivismo.

Portanto, salientou, punitivismo e impunidade seriam traços determinantes da formatação da nossa sociedade; essa dicotomia nos define.

E o selvagem deitou a falar sobre os relatos de memória  que ouviu nos sussurros das matas virgens, no farfalhar das folhagens.

Falou que o Brasil foi transformado pela coroa portuguesa em local de couto e homizio.

Couto é um lugar que serve como refúgio ou asilo para criminosos.

Homizio, que hoje é crime previsto no código penal (artigo 348) é uma espécie de favorecimento pessoal, quando alguém ajuda outro alguém a fugir das barbas da justiça, dando-lhe guarida, abrigo ou uma capa de chuva para ele sair voando.

“A coisa se deu assim”, prosseguiu o índio de aifone: “donjoãoterceiro, logo que a colônia foi repartida em capitanias, estabeleceu que qualquer criminoso que chegasse aqui ou que para aqui fosse enviado, não poderia ser preso, nem acusado, nem proibido, nem forçado, nem executado de maneira alguma, a não ser que o escroque tivesse atentado contra a coroa ou contra a igreja”.

Foi assim, dissse papaku, que o brasil se tornou  o refúgio dos criminosos.

“De todos os criminosos?”, perguntei.

“Bem, aí é que entra a tal da brasilidade”. e explicou-me tudo.

Tomé de souza, que foi o primeiro governador-geral da crimelândia, ainda no período da fundação da cidade de salvador, pegou um índio, acusado de matar um colono, amarrou na boca de um canhão e fez o selvagem se espatifar pelos ares.

O episódio encheu de pavor os tupinambás. mas deixou claro quem seria e quem não seria punido no mundo novo.

Para se ter uma ideia, em 1550, dois franceses foram capturados contrabandeando pau-brasil, crime que a coroa não perdoava.

Pois num é que são tomé de souza, tão punitivista contra os índios, escreveu uma carta ao rei dizendo que “não os mandei enforcar [os franceses] porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro”, e arrumou um trampo, sem concurso, pros dois fascínoras brancos.

Na formação do que seria o Brasil, os historiadores nos mostram uma pilha gigantesca de exemplos de bandido bom e bandido ruim.

O nosso caricato borba gato, por exemplo, aquele da estátua horrenda, é um bandido bom.

Em 1682 o sujeito foi acusado de matar dom rodrigo de castelo branco, com quem entrou no sertão, com um bando de criminosos da capitania de são paulo, em busca de  minas e minérios.

Pra fugir do flagrante, borba deu um sumidão na mata, vagando como um caim, mas aí, como nos afirma raimundo faoro, gato se mostra um homem de bens, resolve revelar a descoberta das minas e o rei lhe concede um indulto.

Mais um criminoso impune e já com molde pronto pra virar estátua.

Antes disso, em 1556, os caetés fizeram um churrasco com o bispo sardinha, o cara tinha nome de iguaria.

Em retaliação ao crime contra o macho branco de batina, os caetés foram brutalmente massacrados pelos criminosos de estimação da coroa, quase chegando à extinção.

Portanto, o brasil humilha, cerceia, detém, tortura, encarcera e mata alguns dos seus, enquanto protege outros.

Porque o país promove a impunidade de rebanho há séculos, é um projeto de nação.  

Como nos diz o pesquisador luís francisco carvalho filho: “castigo existia, sobretudo para índios, escravos e peões. O pelourinho, símbolo da justiça, era monumento obrigatório nas vilas e muita gente permaneceu presa, indefinidamente, à espera de julgamento, em uma época em que a prisão, especificamente, não existia na lei como pena”.

A impunidade de rebanho nos mostra que o expediente é perigoso, um criminoso que não é punido se sente estimulado a criminar, uma vez que impunitas peccandi illecebra, a impunidade estimula a delinquência.

É por isso que a nossa chamada elite é viciada em pilhar, espoliar, invadir, grilar, ocultar, delinquir, falsificar, sonegar, extorquir, matar, desmatar, mandar e desmandar.

Ou metemos moros e dalanhóis atrás das grades ou erguemos a eles estátuas em praças públicas e deixemos que os pombos nos façam justiça.

Palavra da salvação.

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