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Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

Professor do PPDH do NEPP-DH/UFRJ

31 artigos

blog

A lógica do “partido militar” no Brasil: na sombra do vulcão, a falsa moderação ante a sustentação da pulsão de crueldade

O último recurso das democracias liberais se tornou o primeiro recurso para todos os momentos. Chamar o general se tornou o caminho mais fácil para lidar com o desastre de liberar a passagem para forças da barbárie, alimentando até mesmo o aprofundamento da quebra do poder de monopólio do uso legítimo da força

(Foto: ADRIANO MACHADO - REUTERS)
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Na América Latina o partido da ordem foi quase sempre exercido de forma direta por oligarquias e burocracias apoiadas pelo poder militar. Os processos de crise e modernização abriram conjunturas de mudança pelo alto. Os processos revolucionários nacionais populares no século XIX (nas lutas pela independência e nas guerras civis) e no XX (do México até o Brasil entre 1911 e 1930 e, depois na Bolívia, com a exceção de Cuba) foram processos de revolução pelo alto ou passiva. Nestes processos caudilhos e governantes carismáticos foram aos poucos sendo substituídos por governos burocrático autoritários, em que a cadeia de comando se apoiou em processos decisórios que se iniciavam ou terminavam nas mãos do alto comandos das FFAA de cada país. As enormes variações nacionais nunca impediram o estabelecimento de linhas de força e tendências que resultaram em governos cívico-militares, oligárquico-militares, tecnocráticos-empresariais-militares e, finalmente, nos governos cívico-militares (de Belaunde Terry a Fujimori no Peru) ou de garantia da lei e da ordem (de Temer a Bolsonaro no Brasil). 

Os modos de governar com base na guerra interna e na GLO são sustentados nas novas doutrinas derivadas de variações da noção de segurança nacional. O colapso da modernização diante da mundialização produz uma mudança de qualidade no sentido da intervenção militar, que acentua no século XXI uma trajetória de perdas de qualidade e sentido modernizador ou progressista. Como veremos ao final deste artigo, somente um giro democrático e popular poderá reverter este resultado trágico da repetição e da insistência no poder de veto, nas ilusões corporativas que pervertem a função militar na relação com a ordem que se contrapõem ao Estado Democrático de Direito, como expressão do poder e da soberania popular, que se dá através do pacto político do poder da Constituição. . 

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Os ciclos históricos da revolução burguesa ou da modernização capitalista 

Ao longo da história do século XX na América Latina, em especial no Brasil, os sistemas de alianças e as tipologias definiam regimes condicionados por contextos internacionais, como foi o caso da tutela ou da ditadura aberta, com os governos militares na relação com os ciclos da Guerra Fria. Estes processos tinham em comum além de uma enorme marca de violência institucional, com base em doutrinas de segurança nacional, a tentativa de se adaptar a uma primeira etapa das transformações mundializadoras aceleradas no final dos sessenta. Mas tivemos desde meados dos anos oitenta do século XX (com Tatcher e Reagan), uma intensa pressão por regimes de competição com base na seleção de elites, formas de poliarquia e uma intensa pressão por políticas e reformas liberalizantes em matéria de economia política. As mudanças de situação, desde o século passado, sugerem um esgotamento no século XXI das variações clássicas dos roteiros de transições bloqueadas. O esgotamento atinge os blocos de força transformistas de tipo centrista na política que no passado recente fizeram mediações de conciliação, legitimando de maneira mais ou menos aberta as reestruturações do capitalismo, com maior ou menor articulação com os modos de enfrentar a relação entre crise e violência. 

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As forças que animam os ciclos neoliberais têm enfrentado mudanças súbitas que geraram processos de protesto social e ondas de democratização. A sua face ligada ao jogo eleitoral e parlamentar foi sendo substituída pelo jogo judiciário e penalista, apoiado no espetáculo midiático como guerra ao crime e luta contra a corrupção. A mudança se processou aos poucos até que tivemos um endurecimento e violência institucional direta, com a intensificação da pressão por práticas neoliberais de contrarreformas sociais e previdenciárias. Mas por força da fadiga destes processos, depois de um ciclo de governos de centro-direita passamos por alguns governos de centro-esquerda e agora temos o retorno de blocos sociais de centro-direita, de direita e de extrema-direita. 

Os sinais atuais de resistência e explosão colocam a possibilidade de catarses políticas que através de rebeliões de massas encurtem a duração destes processos de autoritarismo, militarismo e fascismo social. O Brasil é um laboratório estratégico global para saber do folego destes regimes de criminalização social e de retirada de direitos das classes populares, com a reativação de formas institucionais de dominação pelo medo, pelo racismo e pela segregação e pela mobilização de forças paramilitares e hordas sedentas por ações de punição e vingança contra os que demandam liberdades, bem-estar social e vida digna. 

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Os governos que praticaram a autonomia relativa no exercício do poder constitucional das nossas frágeis democracias acabaram por criar condições favoráveis a radicalizações e explosões do que Luís Tapia chamou de “Política Salvaje. O fato é que esta segunda década do século XXI parece ter trazido a marca de um retorno da experiência brasileira de golpismo. ”. Assim como no início dos anos sessenta o Brasil foi palco de uma contrarrevolução que inaugurou em 1964 o ciclo das ditaduras no Cone-Sul, processo que já incluía no “partido da ordem “o bloco dos vários discursos (Boi, Bala, Banco, Bíblia, com as várias castas togadas, uniformizadas e engrafatadas. A componente do grande capital e a componente ou braço militar, ao lado das elites civis de classe média e das oligarquias, sempre se apoiaram em braços paramilitares, em esquadrões, comandos e milícias.

No caso brasileiro recente, o que presenciamos foi uma licença para a conspiração e o impeachment e uma reafirmação da disposição de sustentação do apoio ao programa das contrarreformas privatizantes e que destroem direitos. A luta política no Brasil resultou no quadro do novo regime de segurança que oferece como garantia a de que serão varridas da vida pública as forças de esquerda e centro-esquerda, os movimentos e as redes sociais de qualquer tipo. Precisamos examinar de maneira rápida o modo pelo qual tivemos uma licença na democracia para práticas de exceção, na sua relação com os processos sucessivos de submissão ao poder financeiro e de repressão à insubmissão (rebeldia e resistência) face do excesso e dos abusos perpetrados pelos sistemas de segregação, exploração e dominação, hoje marcam a violência sem véus que atingiu nosso país. 

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Para pensar o futuro da democracia é preciso a definição do poder de uma regra básica que redefina o lugar do poder militar, enquanto expressão subordinada ao poder político nos termos do Estado Democrático de Direito.  Na véspera do aniversário de 130 anos da proclamação da República estamos sempre seguindo a lei do eterno retorno autoritário, cuja marca invariante é a tutela militar. Jogando com as ambivalências e a impotência das classes sociais modernas, jogando com as forças da inércia oligárquico-colonial, nossa vida política seguiu a trilha das revoluções passivas. A novidade está em que a nova guerra contra a democracia e a participação se coloca na linha da guerra e do ódio, abandonando até mesmo as mudanças pelo alto. O novo avesso da hegemonia aspira à dominação pura, acaba com a fórmula da revolução passiva. A nova aliança da direita vem contendo as classes populares pelo medo e pela violência institucional direta, vem destituindo a soberania popular como base do contrato social, como fonte ativa do poder constituinte, condição necessária para a democratização progressiva do país.

Mas vivemos sempre com a marca, do que aqui chamamos de “partidos militares” ou a transformação das FFAA em instrumentos de organização das instituições do Estado que, foram decisivas na moldagem das nossas formas distintas de modernização, com a sua adesão a uma componente autoritária, associada ao poder imperialista. Poder militar exercido com uma lógica que oscilou com formas de composição de tipo bonapartista ou cesarista. O florianismo, o Getulismo e a ditadura militar tiveram composições em que houve mesclas de aparelhamento militar e Estado policial com formas e apelos personalistas, ao lado de tentativas de modernização e ordenamento centralizador do Estado nacional. A disputa entre estes processos e a intervenção pura das oligarquias ou os intentos de uma saída liberal-restritiva (um tipo de liberalismo prussiano) levaram a grandes disputas no seio das classes dominantes com efeitos que dividiram a classe média. Desta forma, a balança da história pende para combinações de desigualdade, violência institucional e dependência internacional. 

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Classes sociais e tutela militar

A classe trabalhadora sempre esteve atravessada pela disputa e divisões entre saídas e programas reformistas, com divisões por força da relação entre segmentos organizados e segmentos marcados pelo mundo precário, informal, os recortes urbanos e rurais. O fator classe média e as variáveis de segregação classista, étnica, educacional, espacial, sexual e geracional nos colocam diante de formas de elitismo e identificação com a marca histórica do preconceito derivado da herança escravista. A história militar brasileira está marcada pelas divisões sobre funções repressivas, funções de integração territorial, funções de defesa nacional e pressões de dependência e subordinação aos traços preconceituosos e afinidades com posturas autoritárias que atualizam a marca colonial. 

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A guerra fria e a ditadura levaram a um racha e a uma violenta repressão contra segmentos democráticos e nacionalistas identificados com reformas sociais de base. A redemocratização manteve intocada a torre de marfim ideológica e produziu um efeito paradoxal que permitiu a manutenção de aparatos, práticas e dispositivos autoritários. A corporação militar parece um mundo a parte que perdeu, mais uma vez na história, a sintonia com as bandeiras sociais. Mais uma vez se deixou deslumbrar pela nostalgia da ditadura, apoiada no narcisismo derivado das missões que lhe atribuíam os governos democráticos, que lhe permitiram uma rápida revalorização simbólica na relação com operações ditas humanitárias e ou de GLO, como no Haiti ou, nos momentos de grandes eventos internacionais, ao que se segue as ocupações e operações no Rio de Janeiro. Como sabem os chefes das missões de paz a construção das democracias e da paz dependem de contratos sociais que não podem nascer de processos de ocupação. Os desastres, guerras e rebeliões sempre seguem o rastro deste desastre que hipertrofia as funções sob o efeito dos delírios coloniais.  

Estes referentes históricos são aqui apropriados para a leitura de contextos em que crises orgânicas e quebra das formas tradicionais de representação e governo geram processos de autonomização, com a intervenção e a substituição de colapso civil e de antecipação de fórmulas que se convertem em ditaduras abertas. O poder que mata a política e a legalidade conforma processos marcados por soluções não-orgânicas e não-convencionais com características de ruptura institucional e sem legalidade e legitimidade. Vemos a manifestação de discursos e fórmulas de emergência com técnicas não convencionais de comandar a economia, por pacotes e revisão constitucional, de forma a manter ou definir novos processos de normalização e ordem submissa ao padrão neoliberal com a afirmação do poder de acumulação, saque e exclusão. O tema do Estado de Exceção vira a regra. O seu caráter temporário se transforma em permanente, com sua relação coercitiva que gera processos regressistas paralisando a democratização como saída. Longe de ver como um processo transitório o processo em curso no Brasil é uma retomada intensificada do paradigma autoritário, mas novos elementos resgatam uma velha retórica marcado o ressurgimento do partido da ordem como articulação de novas igrejas, novas mídias e novos grupos sociais que utilizam formas de manejo de recursos financeiros e que montam aparatos de informação e comunicação adequados aos processos cibernéticos da guerra não-convencional, difusa ou híbridas.

A participação e sustentação do novo giro autoritário 

Uma análise sociológica do governo Bolsonaro revelaria o impacto da sua composição cívico-militar como um traço decisivo para a virada jurídico-repressiva e midiática. As evidências mais óbvias desta composição reside na quantidade de militares de alta patente na composição do gabinete e em funções chaves de governo, a composição da chapa com o vice General Hamilton Mourão são a ponta do iceberg de uma costura que funciona como “maquinas de guerra molar”. Tudo isto é mais do que suficiente para provar a materialidade desta presença. A quantidade mais uma vez revela a intensão de intervir éter presença direta das FFAA, no passado e no presente, contra as supostas repúblicas de sindicalistas, acabamos tendo as repúblicas militarizadas. Pois é na dimensão mesma das funções de governo e como força de sustentação que encontramos uma componente de partido orgânico da alta oficialidade, com recortes de história pessoal e profissional, que é marcada pela construção de um capital simbólico de componente diversificada, que opera interagindo por práticas e máquinas e ações moleculares. Muito embora, é bom lembrar que forças armadas e lideranças militares podem ter papeis progressistas e libertários como já ocorreu em guerras de libertação, lutas contra de resistência e em movimentos como o da queda da ditadura salazarista em Portugal, com a revolução democrática aberta pelo 25 de abril de 1974. Um caso de desdobramento da guerra colonial em processos de emancipação e democratização, relacionando descolonização com luta contra o salazarismo.

As 3 componentes da formação discursiva (penalista, religiosa e racista), são mobilizadas com o apoio do poder simbólico do campo militar, compartilhando aspectos decisivos com as individualistas e segregacionistas do discurso do capitalismo autoritário contra os pobres, o feminino e a rebeldia. Revelando o peso da perspectiva afirmativa da coerção própria da elite brasileira. Identificados com a construção do projeto histórico de uma nação, os segmentos militares que protagonizam o apoio ao giro autoritário se colocam quase sempre no espelho da sua força atrativa, derivada da hipótese de uma carreira em níveis distintos, como um mercado que define a visão corporativa da mais sólida, prestigiosa, competente, pura e legítima das instituições nacionais. Ao longo da história as contradições da sua função modernizadora são inseparáveis de uma face contrária ao avanço das componentes democrática e popular do processo institucional. Na percepção desta marca de duplicidade o discurso militar se afastou de noção de soberania popular, já que as suas ações estratégicas partem da visão segundo a qual a missão constitucional estaria subordinada a um atributo teológico-político derivado da soma de modos e componentes da cultura da nação, como a patriarcal, a colonial, a “positivista e a capitalista”. A que se soma os atributos de salvaguardar, orientar e tutelar este corpo popular considerado imaturo, impuro e manipulável, o chamado povo brasileiro. 

O povo brasileiro é considerado inferior e vulnerável ao poder corruptor da política e marcado por interesses e políticas “alienígenas”, sendo ainda inferiorizado por ser fortemente influenciável por fórmulas desviantes geradas por grupos que atuam contra os valores da “família brasileira” e o seu espírito cristão. 

A trajetória recente da ideologia e da formação militar se apoia na afirmação desta componente de uma suposta superioridade que permite uma identificação colonizada e mimética, igual a das elites civis, com as forças dominantes do Ocidente Capitalista, para as quais oferece seu papel e serviço de polícia no plano internacional e nacional. A trajetória recente da oficialidade acentua sua identificação com os mesmos processos culturais que se tornaram decisivos na sociedade brasileira: a percepção da ameaça ao patrimônio, o medo da perda de vantagens e privilégios, o horror e a tensão com a democratização. O que vem sempre relacionado com o negacionismo (quanto aos crimes da ditadura e do nazismo) e, agora, sem velamento ganha impulso com o ataque permanente do Presidente a memória e a verdade. O novo governo rompeu com a ética liberal-democrática ao elogiar o papel dos porões da tortura, que sempre envergonharam as direções mais preparadas das forças armadas. Ao afirmar o caráter natural da guerra suja contra as liberdades e a Constituição, em ações criminosas perpetradas pelo Estado, como a tortura, a prisão de opositores, a censura, o desaparecimento forçado e o assassinato político em nome da segurança nacional, o atual Presidente destrói morbidamente a vida pública que seria o lugar do aprofundamento da transição democrática. 

O golpismo se recoloca no centro através de novas formas de ação do tipo guerra híbrida apoiada na intensa destruição do arcabouço legal do devido processo transformado na sequência de medidas provisórias, no uso de formas permanentes de detenção e arbitrariedade ilegais relacionadas a um casuísmo judiciário sem fim. Desta forma buscam blindar os abusos perpetrados para viabilizar a farsa jurídica da Lava Jato e o golpe do impeachment

Se o penalismo é ponto de partida para o gozo e os arranjos punitivistas, as forças dominantes e os que se identificam com o individualismo possessivo, o racismo, o machismo, com suas fórmulas teológico-políticas, _ da religião do consumo e da lógica proprietária _, fazem o segundo componente desta dimensão ideológica, através da prática discursiva que atualiza os elementos derivados da sua componente histórica. Punir e encarcerar pretos e pobres. 

O terceiro elemento de reforço discursivo das práticas autoritárias  diz respeito ao uso aberto da força e a demanda crescente pelo uso da força bruta direta. Esta demanda é acionada e alimentada diariamente pelas mídias, o que atravessa a sociedade brasileira, o que serve de fio unificador para a atualização das funções pseudo neutras da defesa da ordem e da segurança, justificando o seu agir por força da “opinião pública”. A tutela militar fala sobre a opinião pública, mas seu argumento de fato são os“300 mil homens em armas”, mesmo que contra dezenas de milhões de brasileiros. Neste tipo de pronunciamento feito por chefes militares, ao longo dos últimos seis anos, estes assumem o direito de dividir a sociedade. A ideia de um poder moderador de tutela vem buscando se alimentar do falso véu do modelo jurídico e operacional, que reabre a via da exceção nas práticas do sistema judicial, usando as ondas de medo através do espetáculo das operações e das mudanças legais realizadas sob o amparo frágil do argumento da Garantia da Lei e da Ordem. 

Ora os discursos capitalista, religioso e elitista que confluem com as demandas do fascismo social recente e do autoritarismo histórico precisavam se afinar e articular no horizonte prático e na constituição de um campo de alianças que passa pela noção de inimigo, essencial para o discurso de guerra. O dispositivo que define o inimigo visa identificar os tipos de ameaça e os atores sociais que precisam ser eliminados, o que se torna uma tarefa essencial do poder de polícia que terá apoio diário com base no discurso midiático alimentado pelo judiciário, ambos aperando no eixo do punitivismo através do encarceramento em massa. O poder simbólico do discurso da ordem se articulou com as novas funções políticas e a partidarização da mídia, do ministério público e da magistratura, em nome de suas prerrogativas e da verdade. Desta forma, conseguiram produzir uma vasta operação de cruzada moral, a partir da qual o partido militar retorna na cena com funções renovadas de dar a última palavra, com o poder militar de vetar certas forças da vida política. Os exemplos deste enunciado que incluem o petismo e o PT, o feminismo e os movimentos LGBT+, os movimentos ecológicos, os movimentos negro e indígena se tornam alvos e justificativa para produzir um sentido de movimento de massas e um horizonte de unidade para o bloco da extrema direita que usa de maneira agressiva as cores patrióticas, mesmo que se submetendo aos processos de interesse do capitalismo transnacional em sua agenda de ajustes estruturais com destruição de direitos. 

Crueldade e necropolítica

A operação de destruição da política com a eliminação de direitos não poderia ter tido êxito para acionar esta função de tutela e de partido se não tivesse sido preparada pela combinação entre o negacionismo e a afirmação de uma agenda de crueldade, morbidez e necropolítica. Oscilando entre uma posição de ameaça derivada de uma suposta convocação nacional para restabelecer o regime militar e a busca de uma personalidade que pudesse liderar a dimensão plebeia do ódio aos pobres e pretos, pela demanda por violência direta das forças ressentidas e do recalque da agressividade contra o “politicamente correto”. A manutenção da defesa do regime militar, o peso e organização derivado da estrutura das FFAA não teriam sido suficientes para sufocar a democracia, se a conspiração do impeachment e seus apoiadores não tivesse aberto a porta dos quartéis e dos condomínios fechados para consagrar uma liderança específica oriunda do nível médio da ideologia da horda, um personagem que pudesse marcar sem velamentos marcar a barbárie da sua disposição para nos levar a banhos de sangue purificadores. 

A credencial do ex-Capitão não deriva da sua insubordinação durante sua vida de militar, posto que está sempre repetindo o gesto que marca a sua submissão e o seu desejo de servidão voluntária aos chefes, por este gesto busca oferecer uma imagem do poder que se investe da função de ameaçar. Todo o tempo ouvimos a repetição do desejo de matar e de destruir como modo de governar, paradoxalmente, a partir do discurso que fala do próprio efeito da sua irresponsabilidades, do desgoverno e instabilidade gerado pelo custo da sua ação nefasta, do preço que cobra para esse papel de viver construindo inimigos e com afirmações agressivas e inverídicas. Ou seja, a liderança escolhida se manifesta pela  função de desorganizar as mentes, de reafirmar sempre a necessidade de destruir, controlar, matar cujo significante decisivo é sempre definido pela pulsão de morte: pela sua relação com a defesa manifesta do direito de matar e torturar adversários. Esta garantia dada ao crime de Estado pelo novo Presidente da República libera as formas de linchamento, a caça às bruxas, as cruzadas morais, tortura, a censura, o genocídio que aciona a pulsão de morte pela via da crueldade sem velamento. A licença para matar e a defesa do abate perpetrado por atiradores de elite são elementos deste processo que vai muito além do pensável. 

O discurso militar pode assim operar como um pseudo moderador num quadro de extremismo e passagem ao ato. Os elogios dos porões da ditadura aproximam as forças da “limpeza étnica”, organizam e incorporam o valor das ações dos esquadrões, milícias, torcidas e hordas que são acionadas para combater os “inimigos” por todos os meios. Na sua ilusão coletiva de seus eleitores, a opção pelo ex-Capitão derivou desta idéia de uma ação rápida e emergencial que “limparia a política”, mas que acabou destruindo parte do centro e colocando o novo bloco da direita entre a submissão forçada a uma agenda econômica de destruição e uma agenda política que afeta os aspectos modernos e os horizontes da componente política liberal-individualista que precisa das liberdades e da cultura de consumo. A forma familiar, personalista e arbitrária, que marcou as ações da República de Curitiba e da Empresa Familiar do Presidente, paradoxalmente, jogou lenha na falsa neutralidade do partido militar cuja vontade de poder é tão grande quando as do arrivismo neopentecostal e miliciano. O passo para organizar a base social da extrema direita, vai ter de provar sua proposta e identidade. Aqui existe uma fragilidade e espaço para a formulação de estratégias de resistência. 

O governo cívico militar é mais do que a expressão da ossatura dos aparelhos e da composição de classe do Estado, mais do que o poder de veto e tutela que gera interdições, mais do que uma força operacional que nos mantém reféns da metamorfose da doutrina de segurança interna através da GLO _ cuja doutrina é a mais adequada aos formatos do Estado de Exceção e para a decretação de situações de emergência, etc. A novidade está em que a patente realidade da militarização se fez adequar pelos modos de organizar e agir através dos mais variados tipos de ocupação burocrática, de postos de decisão, de projeção no poder com presença através de intervenções e conquistas eleitorais. Assim como, pela capacidade de sinalizar para o jogo de poder estabelecer as pontes para a reconstrução de espaços de mediação entre forças políticas, grupos sociais e mesmo nos buracos abertos pelo desastre em todas as áreas. 

O último recurso das democracias liberais se tornou o primeiro recurso para todos os momentos. Chamar o general se tornou o caminho mais fácil para lidar com o desastre de liberar a passagem para forças da barbárie, alimentando até mesmo o aprofundamento da quebra do poder de monopólio do uso legítimo da força. Vivemos sob o desvio forçado permanente da função militar pela perspectiva da falsa segurança ao dar consistência e liberar a vontade de poder das hordas vingativas e fratricidas. Agora fica cada vez mais claro o quanto estamos sujeitos ao jogo dos pronunciamentos diários do Presidente, que se convertem na forma do espetáculo que revela a ausência de projeto para o pais. Mas que reafirma a lógica autoritária e abusiva que coloca o partido militar no poder. Um ator cada vez com mais distância dos princípios que animaram os pracinhas e a memória da Força Expedicionária Brasileira, da FEB. Esta redução que combina arrivismo, negacionismo, partidarização e mistificação nos faz estar sempre vivendo na sombra do vulcão. 

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