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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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A pátria para os suburbanos em Água Fria

O que é a pátria para esses indivíduos? De que pátria eles falam? A pátria é a família de Bolsonaro? Será a do ministro da “educação” que gritou viver no sacrifício, coitado, por ter virado ministro? Ou a do ministro do “meio ambiente”, que reivindicou o tempo da “paz” do coronavírus para desmatar a Amazônia?

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Chove muito no Recife agora. E no silêncio das ruas nesta quarentena, reflito sobre o vídeo da reunião do presidente e ministros de 22 de abril. Ali, muito se gritou e se falou sobre inimigos e ameaças à democracia. Mas crescem na lembrança, entre palavrões e ódio, os berros sobre a pátria. Então me pergunto: 

O que é a pátria para esses indivíduos? De que pátria eles falam? 

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A pátria é a família de Bolsonaro? Será a do ministro da “educação” que gritou viver no sacrifício, coitado, por ter virado ministro? Ou a do ministro do “meio ambiente”, que reivindicou o tempo da “paz” do coronavírus para desmatar a Amazônia? Será a do ministro da “economia” que pretende privatizar tudo? Ou será a dos ministros militares que apoiam o pior governo dos últimos 40 anos? Então, enfim, a pátria é a do capital, dos bancos e mercados com seu desprezo soberano à vida?

Então me veio um sentido íntimo de Brasil. Eu sei, como todo brasileiro sabe, que a pátria é a amplificação da cidade, do bairro, da rua. A minha, em particular, vem do Recife da segunda metade do século vinte. Ou do bairro de Água Fria, que o resto do mundo desconhece. Assim, copio do Dicionário Amoroso do Recife. 

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Penso que era do espírito do lugar e do tempo dos anos 60. Naqueles anos de agitação política no Recife, na onda, no mar de discussão de ideias, na tradição cultural do bairro de Água Fria, que vinha dos terreiros de xangô, como o de Pai Adão, a barbeiros filósofos, comunistas, como Luiz Beltrão, que era um popular cultivador de livros e da língua inglesa, creio que dessa reunião nasceu a gente que povoou de humanidade o Colégio Alfredo Freyre. Ali se fez um espaço de formação de caráter. Se houver em algum país uma academia de anônimos, de notáveis anônimos, de homens e mulheres que ninguém conhece, mas que viveram uma vida exemplar, digna de uma antologia de heróis sem rostos gravados, haverá um educandário semelhante ou igual ao Colégio Professor Alfredo Freyre. A memória sobe e revela, e se revolta contra a síntese omissa de um verbete. Para nada falar dos destinos imortais não sabidos, lembro o professor Arlindo Albuquerque, o mestre Arlindo, o fundador de homens e mulheres para todo o sempre.  

Nós, os meninos e meninas, dele podemos dizer que era o mestre só possível de acompanhar com os nossos queixos erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento seu, com os nossos olhos e ouvidos bem despertos. O professor Arlindo nos escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau. Acreditam nisso, estudantes pobres em uma escola pública a ouvir um mestre em voz alta nos contar sobre o prazer de andar a pé? 

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Com frequência, muitas vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler este gozo: “Sur la liberté de la conscience”. Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos murmúrios, que o professor em 1964 fora espancado, preso, porque fizera parte da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro didático de francês vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase que o mestre nos fazia ler “Sobre a liberdade de consciência”. 

— Vejam a beleza. Repitam esta frase. O título é uma coisa extraordinária — e silabava em ritmo lento “sur la liberté de la conscience”. 

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Agora, vou mais longe. Penso que o significado de pátria vem até mesmo antes do colégio. A pátria vem às vezes com um cheiro denso, perfumado, das noites em frente ao mercado público de Água Fria, quando o abacaxi trescalava, amadurecia no sereno. Era um vento que soprava no calor e trazia pra gente desejos impossíveis. De que natureza somos feitos? Que demônio ou anjo nos pôs no peito desde a infância uma carência fora dos bons costumes? Do abacaxi vinha um perfume quase entre sombras, porque a frente do mercado, que dava para a Avenida Beberibe, não era bem iluminada. E, coisa rara, nesse quase escuro não havia malefício, era um bem para a alma da gente, assim como, se comparamos mal, cheiro de namorada pela noitinha, sem o testemunho da lua.

E concluo de outro texto: 

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O significado de pátria não tem um conteúdo exclusivo,  xenófobo. Outras pátrias de outras terras constroem a nossa. Assim, o  gosto pela música negra dos Estados Unidos, aquela que também era ideologia, mas de outra forma, impura e de cambulhada também, de Nat King Cole, The Platters, Louis Armstrong. Ella Fizgerald. Aquelas canções, se não eram a pátria do socialismo, se não conseguiam ser a terra prometida da fraternidade, eram quase de um reino onde cabiam todos os humanos, sem data na sua data, de raça mas sem raça, americana mas sem americano, vale dizer, a música que nascida naquela podre sociedade e tempo não era podre, porque não era só aquela sociedade e tempo. Pois o que poderia superar a voz de Nat King Cole em Blue Gardenia ou Stardust? Ninguém precisava falar inglês, porque na arte estavam todas as línguas, todas as pátrias, todas as cores, do arregalado olho negro ao apertado amarelo.

Tão diferente da pátria gritada no vídeo da reunião do presidente. Ele não passaria sequer nas provas de francês do mestre Arlindo Albuquerque. E depois, seria expulso para todo o sempre do colégio da nossa formação. 

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