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Gustavo Conde

Gustavo Conde é linguista.

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A tempestade perfeita na imprensa convencional

Ficou evidente o papel da imprensa no golpe. A população brasileira, por mais dócil que seja, percebeu esse movimento. Esse dado, no entanto, não dispõe de embasamento estatístico direto como aquele que disponibiliza o derretimento da direita

Rede golpe de televisão (Foto: Gustavo Conde)
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Golpes precipitam mudanças drásticas nos costumes. Uma vez instalado, um golpe muda a opinião pública, os hábitos, a economia, as alianças, a lógica institucional, as próprias instituições (que lhe serviram de substrato) e a percepção geral das palavras e das coisas. Se um golpe não mudasse nada disso, ele não seria um golpe, seria um acordo.

A primeira constatação que decorre disso é: a população brasileira rechaçou o golpe. Não existe uma pesquisa sequer que não confirme esse dado. Ato contínuo, esta mesma população rechaçou seus protagonistas, um a um. Não é preciso citar: são eles os donos das maiores rejeições de opinião pública já registradas.

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Por outro lado, as vítimas políticas do golpe, o PT e a esquerda, foram alçados à condição de bastiões de resistência democrática (não sou eu quem diz isso, são as pesquisas).

Um imenso e poderoso recall ideológico foi feito através do golpe para desespero de seus agentes: o segmento progressista que habitava o poder há 13 anos reforçou de maneira espetacular sua re-conexão com a entidade povo. 'Povo' voltou a ser sinônimo de 'esquerda', se é que um dia deixou de ser - não considerando o serviço de destruição de reputações da imprensa convencional.

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Imprensa convencional, eis uma plataforma de texto a ser debatida. Porque se o golpe empurrou para a vala da história a direita que não soube perder - historicamente protegida pelo controle seletivo da informação - ele também desacreditou de maneira violenta a própria imprensa "tradicionalista". Houve uma migração definitiva de plataformas, técnica e conceitual.

Aos dados. Ficou evidente o papel da imprensa no golpe. A população brasileira, por mais dócil que seja, percebeu esse movimento. Esse dado, no entanto, não dispõe de embasamento estatístico direto como aquele que disponibiliza o derretimento da direita. Isso se explica pelo fato de os institutos de pesquisa serem diretamente ligados aos veículos em questão. Seria como se o Datafolha perguntasse ao entrevistado se este confia no Datafolha.

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Mas as pesquisas expressas digitais, os debates nas mídias digitais, os comentários em redes sociais, a própria percepção da população nos deslocamentos urbanos e na vida social em si são suficientes para acender o sinal de alerta para esta imprensa que se vê em uma encruzilhada histórica em companhia de seus patrocinadores estatais de turno - afinal, uma regra básica do mercado publicitário é que a marca fica associada ao meio que a veicula e vice-versa.

O fenômeno merece uma explicação técnica, basicamente linguística. Em primeiro lugar, convém não subestimar a capacidade intelectual dos cidadãos que constituem a opinião pública: um cidadão que domina uma língua humana nativa tem condições de elaborar interpretações sobre a conjuntura social que o cerca. Ponto.

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Segundo ponto: diferentemente do que acredita um certo pensamento brasileiro, majoritário no mercado - e que ainda trata a interpretação de texto nos moldes de Roman Jakobson e seu fluxograma da comunicação, uma teoria superada há décadas - este cidadão é capaz de cruzar dados e ponderar sobre agrupamentos de sentido (de discurso), mesmo que não faça isso de maneira consciente.

Ele tem condições de entender que todo o processo de elaboração do golpe e seu consequente "logro" foi estimulado e, de certa maneira, "arquitetado" pela imprensa convencional. E, mesmo que ele não leia os jornais, ele assiste telejornais, ouve rádio e acessa a internet.

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De uma maneira ou de outra, este cidadão acompanhou esse movimento e é com base nisso que ele rejeita furiosamente o golpe, bem como reanima sua adesão à entidade Lula e ao pensamento residual da esquerda.

Qual a consequência óbvia disto? A consequência é que a imprensa convencional passa por um momento inédito de falta de credibilidade. Ela se desmancha como o segmento político que ela própria ajudou a levar ao poder. Há, no entanto, de se fazer uma explicação técnica para isso também.

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O discurso (o sentido dos enunciados) não é apenas uma superfície límpida em que associa o fato ao texto. O discurso tem um viés, faz parte de sua natureza ter uma "direção" persuasiva (não é à toa que o 'sentido' se chama "sentido": o sentido é uma direção, um caminho, uma seta). Sem essa direção, o discurso, a rigor, não existe. Isso, inclusive e com outras palavras, já foi dito nos primeiros anos das faculdades de jornalismo brasileiras: não existe 100% de objetividade nem 100% de neutralidade.

O que o cidadão "leitor" de fatos, textos e imagens infere diante de tudo isso que se apresenta de maneira quase rudimentar? Que a imprensa convencional está no mesmo lugar técnico de "produção de sentidos" (de direções) que o segmento político agora tão rejeitado por ele. É uma percepção estrutural, uma percepção não do "o quê", mas do "como".

A clareza que o golpe propiciou em termos das escolhas políticas (completamente aferíveis- repito - via pesquisas de opinião) também contaminou a percepção do cidadão com relação à informação que ele deve consumir ou deixar de consumir.

O estrago foi grande. O jornalismo já enfrentava a imensa dificuldade tecnológica de repensar suas plataformas junto à internet. De quebra, havia o esgotamento do próprio conceito da prática de jornalismo, com redações hierarquizadas e prospecção excessivamente seletiva de fatos políticos.

Esta crise estrutural foi tão violentamente sentida pelas editorias e redações a ponto de, sábado último, o editor executivo da Folha de S. Paulo, Sérgio Dávila, chegar a dizer que "o jornalismo profissional [sic] continuará sendo a lente a tornar nítida a distinção entre notícia e falsidade". Isso é a materialização do desespero pela fatia de mercado que jamais voltará ao seu nicho de origem. Convenhamos: em pleno século 21, um executivo advogar a propriedade da verdade para sua empresa de comunicação? Beira o risível.

O que ocorreu, portanto, foi a tempestade perfeita para esta linguagem que dominou o século 20. A crise da imprensa - e de sua interface de conteúdo - é tão grave que sucedem acontecimentos dramáticos para ela: o racismo de William Waack, o escândalo Fifa-Globo, o escândalo Globo-Mapfre (a empresa de comunicação é dona da maior empresa de previdência privada no país), a misoginia de José Mayer, a receita publicitária de todos os veículos em declínio (ainda que mantida artificialmente pela Secom), a estrutura de teledramaturgia que não mais se sustenta, o preço do papel etc.

Não bastasse, ainda, os problemas estruturais e financeiros, há o problema do esgotamento da linguagem. A gravidade desse esgotamento é tal que permitiu, ainda, um teste de natureza técnica, em tempo real, com um desses veículos: a "pegadinha do Estadão".

Este missivista que voz perturba a leitura escreveu uma carta em flagrante tom de deboche para o Estadão e viu esta mesma carta ser publicada como um grande elogio ao governo e à imprensa. Estava ali confirmada, de uma certa maneira, a precariedade do instrumento 'interpretação de texto' para um veículo dotado de concessão, que se pretende um filtro técnico de informações com vistas à utilidade e ao debate públicos. A carta continha absurdos inomináveis, verdadeiras aberrações estatísticas, além de informações publicamente falsas.

O corolário desta verdadeira demolição por que passa a imprensa convencional atende pelo nome de mídias digitais. Elas herdaram a busca por informação qualificada. São, por assim dizer, a nova fonte de referências primárias e secundárias, respeitadas pelos protagonistas políticos da esfera democrática, pelos intelectuais, por artistas, debatedores e, sobretudo, pela imprensa internacional - que já entendeu onde buscar a leitura real de Brasil neste momento. O prestígio de que hoje gozam as mídias digitais, portanto, é também inédito.

Da mesma maneira que ficou clara a rejeição ao golpe, o reconhecimento pelo trabalho de resistência crítica ao golpe realizado pelas mídias alternativas se consolida como um importante valor no cenário da opinião pública. Isso é um patrimônio da sociedade, não uma briga infantil entre plataformas (como a imprensa brasileira parece ler o fenômeno). Não admira que a imprensa convencional se sinta tão ameaçada: eles mesmos se veem obrigados a prospectar informações dentro da cena digital para conseguirem dialogar minimamente com a realidade que lhes escapa.

Até as famosas "fontes", esse instituto invulgar do jornalismo histórico, sofreram um impacto com as consequências do golpe. Hoje, as fontes das mídias digitais são mais confiáveis que as da imprensa convencional, tão acostumadas estas últimas a "plantarem" informações e percepções interessadas.

Os ventos, portanto, mudaram de lado e sopram agora em direção ao novo mundo do texto e do debate público. Uma linguagem que nasce e se consolida merece ser celebrada. Torna-se patrimônio civilizatório, um fórum permanente que empodera e dá voz a múltiplas leituras, não somente aos anunciantes. O signo das mídias digitais é a própria liberdade de expressão em seu sentido máximo, é desse valor que decorrem todas as suas qualidades, consequências e desafios.

Um golpe é definitivamente terrível para uma sociedade, isso é evidente. Mas a reboque de suas brutais consequências, há sempre um conjunto de "efeitos colaterais" que surpreende e cria as condições para um retorno ao protocolo democrático. O desejo das pessoas por informação qualificada é como um vírus: qualquer substância que o combata o fará voltar mais forte e mais resistente. Isso é do funcionamento da linguagem. Isso é do funcionamento da história.

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