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Tarso Genro

Advogado, político filiado ao Partido dos Trabalhadores, foi governador do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil

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A tese do “marxismo cultural” – ponte do micro para o macro-fascismo

O ex-governador gaúcho e ex-ministro Tarso Genro escreve sobre a questão do "marxismo cultural", que qualifica como "tese liderada por pessoas sofredoras e desajustadas" e que "não é o ovo da serpente,  mas a própria serpente que ataca a modernidade e a democracia, em nome do fundamentalismo e das religiões deformadas pelo culto do dinheiro"

A tese do “marxismo cultural” – ponte do micro para o macro-fascismo (Foto: REUTERS/Carlos Barria)
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Felix Guattari faleceu em 1992 aos 62 anos. Filósofo, estudioso, crítico e intérprete da psicanálise, deixou uma obra inquietante e desbravadora dos novos tempos da subjetividade moderna e das novas formas de revolucionarização da vida. Refiro-me a ele porque estamos vivendo uma época em que os instrumentos de interpretação histórica vindos da economia e da teoria política — aplicados sem mediações — são mais insuficientes do que antes para pensar o presente de crise da economia e da moralidade política democrática, ora vivida no Brasil e no mundo.

Os cortes de 30% dos recursos para as universidades federais, que geraram enorme perplexidade na inteligência acadêmica do país e tiveram larga repercussão na mídia, foram produto de uma estratégia ofensiva contra a república e contra a democracia. Eles só foram feitos com esta desenvoltura demencial porque o bloco de governo — orientado desde fora do país — tem uma estratégia bem clara, reveladora de uma divisão de responsabilidades no grupo dirigente, que permite uma dupla atenção política à base bolsonarista: de uma parte o governo fala, através do presidente, sobre “costumes”, atiça mortes, dissemina o ódio aos divergentes e aos que ele julga diferentes dos seus padrões fascistoides, através do discurso populista de direita orientado por Steve Bannon; e de outra, setores “econômicos” do governo orientam a “luta” pelas reformas com a “nova política”, da compra de votos e o apoio da maioria dos grandes empresários, para aprová-las, agora especialmente a da Previdência.

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Esta aliança — improvável em outras épocas — coloca na vanguarda da luta política a lumpen-burguesia mais amoral, sem nenhum apego ao destino social do seu País, unida ao lumpen-proletariado não simplesmente “dominado”, mas atiçado a cultuar a violência exigida pelas altas classes médias contra os pobres. Esta aliança improvável só foi possível nesta extensão, a partir das novas tecnologias de informação e comunicação, que permitem a quem as controla não somente “fabricar a opinião”, mas também socializá-la para naturalizar a barbárie, reformar o Direito sem reformar a Constituição e erguer a opinião pública manipulada à condição de juiz e carrasco do seu destino comum fraudado. A burguesia renuncia — se é que alguma vez os cultuou — aos valores republicanos de 1789 e os miseráveis explodem em ressentimentos catárticos contra a sua própria vida.

A  razoável absorção e naturalização acrítica da fórmula “marxismo cultural” pela maioria dos escribas políticos da mídia tradicional, originária dos escaninhos da internacional fascista de Bannon — em rede com outros centros de proliferação dos totalitarismos pós-modernos — indica que existe um “desnivelamento” assustador no fazer político dos lados em disputa. De um lado, estão os instrumentos de sedução do neofascismo aceitos e promovidos pelo oligopólio da mídia, que lidam com um senso comum “cansado” de sofrer na democracia; e, de outro, estão os instrumentos e métodos de resistência, originários do campo democrático de esquerda. A diferença qualitativa entre ambos é brutal: os instrumentos de dominação da hipnose fascista são compatíveis com o estágio das subjetividades controladas e com a base tecnológica das mídias dominantes. Os instrumentos e os discursos de resistência da esquerda, todavia, são — na maioria das vezes — defasados e se reportam aos destinatários das suas mensagens como se estivéssemos, ainda, numa sociedade industrial clássica, razoavelmente unificada pelo pacto social-democrata.

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Por que isso ocorre? Porque o discurso do neofascista lida com a imediatidade das relações virtuais ou reais, que expandiram e universalizaram o mercado global; e o discurso de resistência socialista ou social-democrata corteja um equilíbrio inexistente, como se estivéssemos ainda  no “mesmo barco” histórico das concessões altaneiras da social-democracia. Nem o barco é o mesmo nem a social-democracia será mesma depois de Trump e da força normativa que o capital financeiro imprimiu sobre a política: os polos visíveis e relativamente conscientes da sociedade de classes tradicional, os aparatos de dominação e negociação burguesa (clássicos) e os aparatos de pressão (reformistas tradicionais) estão constrangidos pela a imediatidade da dívida pública, que passou a ser fonte fundamental do financiamento da renda dos ricos em escala global e dos seus asseclas internos.

Os tipos de narrativa política destes dois “centros”, que se originam destes dois polos, são mais visíveis quando se reportam direta ou indiretamente à questão democrática hoje no Brasil, cuja expressão política é pervertida pela “exceção”. Com o auxílio militante da mídia tradicional, a “oposição” ideológica dos discursos (que se tornaram relevantes no imaginário do povo)  vem de um “achado” espetacular, produzido pela direita internacional nos processos eleitorais em todo o mundo.

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Este “achado” se definiu no juízo que dominou a imagem dos candidatos, entre os chamados “dois extremos” aqui no Brasil: o candidato claramente identificado com a violência e o fascismo era apresentado como um “bem intencionado”, dotado de”alguns excessos”; e  o candidato da esquerda — o moderado Haddad — era apresentado como o próprio “excesso”. Este, portador de todos os vícios do passado, o outro — fascista sem medo — o introdutor do blefe da “nova política. A partir daí foram sendo construídas as respostas mobilizadoras para os temas do cotidiano como a violência, a função da escola e da universidade pública.

Simples assim: “morte a quem mata”, como norma destinada aos negros e pobres, de um lado (discurso simplificador do fascismo na questão da segurança pública)  X “a quem mata”, não punição, mas só “direitos humanos” (discurso atribuído a Haddad, como se esta fosse sua opinião). Na educação: “a escola deve ensinar, não perverter mentes pela ideologia” (fórmula rasteira para unificar uma ideologia fascista de ensino que exclua ilustração)  X “marxismo cultural” — imputado a Haddad –, como se a universidade fosse dominada pela filosofia marxista e supostamente defendida pela esquerda como “técnica” de ensino.

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Nesta dubiedade manipulatória, foram fabricados dois axiomas imediatos para a absorção ampla das classes populares: primeiro, as garantias constitucionais da “ampla defesa”, favorecem a criminalidade; e segundo, a universidade pública só gera “ideologia” e nada produz para melhorar a vida imediata. Duas verdades estão escondidas, todavia, nesta mistificação: primeiro, quando se mutila o direito à vida para combater o crime, o Estado passa a monopolizar o “fazer” criminoso e os agentes do Estado, que o praticam, se imunizam de responder por eles dentro do Estado de Direito mutilado pela exceção; segundo, a política educacional, que passa a ser administrada é a da cultura política do governo, não a da Constituição, cujas garantias e direitos passam a ser revistos, de fato, pela política criminosa dominante.

O discurso da imediatidade e da simplificação da direita fascista — com a sublimação histérica do presente no mercado — substituiu, com vantagem emocional, o discurso da “pura nação do futuro”, compatível com o fascismo do século XX.  O bom futuro é agora apresentado mecanicamente como o oposto salvacionista das largas narrativas históricas da democracia e do socialismo, ou seja apresenta-o, no “agora imediato”, como entrega irracional do cotidiano: o discurso catártico do ódio. Por outro lado, o discurso da democracia e do socialismo — de aceitação mais complexa — vai perdendo terreno porque precisa se sustentar em valores construídos pela convicção, no momento em que eles estão na contramarcha da História, como estão a solidariedade, a “compaixão” como diria Faulkner, o humanismo das luzes.

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Norberto Bobbio, estudando Hobbes e contrariando as leituras mais vulgares deste gênio filosófico, diz que, para este, a “fonte de todo o valor e portanto de todo o critério de avaliação — do bem e do mal, do justo e do injusto — é a própria vontade do homem”. Numa entrevista de Paul Auster — nesta ZH de fim de semana — o escritor reclama que Trump “é um estúpido e egoísta (e) além de maluco é provavelmente a pessoa mais maligna e narcisista que eu já vi na vida pública dos dos EUA”.

Guattari, que abre (e agora fecha este artigo) diz que “o fascismo, independentemente de todas as determinações sociais e políticas, também pode ser considerado como expressão de um acúmulo, de uma bola de neve de micro-fascismos.”

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A tese do “marxismo cultural”, que na verdade é uma oposição ao cientificismo moderno do Século 18 e aos valores da liberdade, igualdade e fraternidade do século 19 — tese liderada por pessoas sofredoras e desajustadas –, não é o ovo da serpente,  mas a própria serpente que ataca a modernidade e a democracia, em nome do fundamentalismo e das religiões deformadas pelo culto do dinheiro. Já cabe a desobediência civil.


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