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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Abelardo da Hora e Primo Levi hoje

"Agora, todo o mundo está raspando com a colher o fundo da gamela para aproveitar as últimas partículas de sopa; daí, uma barulheira metálica indicando que o dia acabou"

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Por Urariano Mota

Olhem só as pegadas que o calendário faz na gente. O grande escritor Primo Levi, memorialista fundamental dos crimes nazistas,  nasceu em 31 de julho de 1919.  E cinco anos depois, o grande Abelardo da Hora, escultor genial, desenhista, mestre dos maiores artistas de Pernambuco, nasce  em 31 de julho de 1924. Então fiquei indeciso entre dois caminhos: sobre qual desses magníficos eu deveria rascunhar algumas linhas nesta sexta-feira? 

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Digo mais, para não ser desonesto. Entre tantos ilustres que há séculos honram este dia, por que deveria lembrar dois, apenas dois? A razão é simples e revoltante ao mesmo tempo: a minha ignorância é notável, e por isso devo falar o mínimo para não enganar o leitor. Mas ainda assim a dúvida permanece: sobre esses que imagino saber alguma coisa, quem eu destaco, Primo Levi ou Abelardo da Hora?

Então fujo do falso dilema neste dia e salvo linhas sobre os dois eternos. Em ordem alfabética, primeiro Abelardo da Hora, que assim aparece num trecho do Dicionário Amoroso do Recife:  

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“Em números, esse homem possui 90 anos, 55 quilos, mais ou menos, 1 metro e 65, menos talvez alguns centímetros. Se a presença física é o que nos impressiona e resiste na retina, nem um só desses números lhe faz justiça. É impressionante, é uma solução da arte e do engenho humano o tamanho dos monumentos que Abelardo da Hora cria, apesar da estatura e da aparente fragilidade em seu corpo. Ainda que pareça bem mais baixo, Abelardo da Hora cresce na lembrança em outras dimensões.

Ele possui um senso de humor de criança. Uma alegria de criar que não o abandona. E, para nada dizer, esse homem baixinho, magro e frágil é nada mais, nada menos que o Adão da arte brasileira. Ele fez nascer o fogo em gerações de pintores que hoje estão no mundo: Brennand, Samico, Guita Charifker, Wellington Virgolino, Zé Cláudio, Corbiniano, e ‘uma porção de artistas’.......... 

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No fim da entrevista, Abelardo da Hora me contou esta viva história, em que nos falou como foi expulso da casa do pai de seu aluno, Francisco Brennand:

– Toda manhã, quando eu me acordava, acordavam também aquelas filhas dele, do velho Ricardo, irmãs de Francisco, viu?, e quando elas saíam para a escola, eu via aquela carinha de anjo… veja bem, isso todo dia, na cara do rapaz, de um adolescente, não tem quem aguente, não é? Veja bem. Então eu fiz uma escultura – a torre dos meus sonhos – veja bem, fiz uma escultura com uma mulher, em pé, entendeu?, dois cupidos brincando com a cabeleira dela, com uma placa que vinha atrás das costas dela, brincando com a cabeleira e um freguês abraçado com as pernas dela com a minha cara! Então veja bem. Todo o mundo notou isso…. Quando eu levei a estátua pra sala, ficou aquele silêncio, um clima meio esquisito. Pesado.

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– Mas ela estava vestida, não é?

– Vestida, mas com aquelas formas perfeitas, com aqueles seios lindos, dois cupidos brincando com a cabeleira dela, e o freguês abraçado com a saia dela era eu, com a minha cara, todo o mundo reconheceu. Quando foi na hora de dormir, Francisco me disse, ‘Da Hora, eu já vou subir’. Aí seu Ricardo tinha feito um gesto com a mão. Ele me disse: ‘Abelardo, como é que você faz uma coisa dessas comigo? Eu tratando você aqui como um filho, você vê que eu sou seu amigo, muitas vezes eu chamo você pra ouvir música, eu toco pra você, entendeu?, e você fez um trabalho que é o mesmo que você estar querendo fazer amor com a sua irmã’. Eu respondi: ‘Seu Ricardo, não diga mais nada, que amanhã eu vou-me embora.’

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E completou, quando eu lhe fiz ver o quanto ele fora ingrato com um mecenas: ‘mas não tinha cristão que aguentasse aquela beleza’ ”.

De Primo Levi, em outra tonalidade, com um radical amor à vida, mesmo quando ela se degrada na mais absoluta negação, recordo um trecho de É Isto um Homem?. Nele, o escritor  realiza uma narração imortal pela capacidade de unir o particular da sua história em Auschwitz ao universal da espécie humana: 

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“Evitar a seleção para a morte, para o gás, é bem difícil. Quem não pode, procura defender-se de outra maneira. Nas latrinas, nos lavatórios, mostramos um ao outro o peito, as nádegas, as coxas, e os companheiros nos animam: 

– Fica tranquilo, não vai ser a tua vez.

Ninguém nega aos outros essa esmola; ninguém está tão seguro da sua própria sorte que possa animar-se a condenar os demais. Eu também menti descaradamente ao velho Wertheimer; disse-lhe que, se o interrogassem, respondesse ter 45 anos e que não deixasse de se barbear na noite anterior, ainda que isso lhe custasse um quarto da ração de pão... 

(Pela troca que o velho faria de um pedaço de lâmina de barbear por um pedaço de pão)

Agora, todo o mundo está raspando com a colher o fundo da gamela para aproveitar as últimas partículas de sopa; daí, uma barulheira metálica indicando que o dia acabou. Pouco a pouco faz-se silêncio. Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné na mão, meneando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido para a morte. Insensato! Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem 20 anos e que depois de amanhã irá para o gás e bem sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar, sem pensar? Não sabe, Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, chegará nunca a reparar?

Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn.”

Como veem, era impossível escolher entre os dois imortais num 31 de julho. 

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