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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Ameaça da ditadura fascista sempre volta

Em um sentido maior que a crueldade um dia cometida, para quem viveu a ditadura o terror de Estado nunca desapareceu. E diante da ignorância do seu horror, a ditadura é como um suplício de Sísifo. Todos educadores, artistas, escritores temos sempre de recomeçar a narração da sua indignidade, porque imenso é o seu desconhecimento

(Foto: Agência Câmara)
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Ouvimos esta semana de um deputado: "Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5”.

Sem dúvida, ameaça de novo golpe de Estado nunca deixou de estar presente. Como possibilidade ou memória, a ditadura não está morta. Por impunidade e pela natureza dos seus crimes, ela ainda não morreu. Em um sentido maior que a crueldade um dia cometida, para quem viveu a ditadura o terror de Estado nunca desapareceu. E diante da ignorância do seu horror, a ditadura é como um suplício de Sísifo. Todos educadores, artistas, escritores temos sempre de recomeçar a narração da sua indignidade, porque imenso é o seu desconhecimento.

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No romance “A mais longa duração da juventude”, narro a sobrevivência incomum dos seus crimes, como a seguir.

“O movimento de condenação ao criminoso cabo Anselmo passa por ele e se dirige para Soledad Barrett, a mãe que espera um filho, encostada ao muro do quintal da casa. Então a sua pessoa volta, desce e falamos sobre ela, como se estivesse presente e lhe prestássemos um reconhecimento. Na verdade, esta é uma sensação que temos presente. Quando eu falava para Hilda Torres, a atriz que a reencarna no teatro, quando eu falava para Hilda lá na Ilha de Kos, eu lhe disse:

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- Eu sinto Soledad como se ela entrasse agora por aquela porta. Eu sou ateu, mas sinto a sua presença viva.

É um vivo sem a matéria do corpo, eu poderia ter dito. Mas isso podia ser interpretado de um modo tão espírita, que cairíamos numa discussão do gênero Allan Kardec. Mas a pessoa de Soledad é real, a pessoa que nos acompanha é real, e se nela não tocamos com os dedos, podemos sentir o seu cheiro, as pernas, o rosto, o riso, sentir quase sem ver, se me entendem. Sabem a luz da estrela que vemos e não pegamos? A pessoa que amamos se toca, se pega, mas sem o tato, ou melhor, com um longo e total sentido, ainda que não o queiramos. É um imperativo do coração. É como se o sentimento se desprendesse da nossa vontade e autônomo nos desse uma ordem. Age, anda e voa. E o ser limitado que éramos ganha o espaço para abarcar o valor que não tínhamos sido. Mistura de empatia, solidariedade e sentimento oculto. É como se estivéssemos bêbados de amor, enfim. Então o beijo em Soledad voltou, lá do fundo daquela tarde de antes. Com mais precisão, voltou nos lábios que abraçam a sua pessoa.

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O horror das mortes em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é justo resumir uma vida humana assim. Sobre o animal sentimos a brutalidade: ‘O novilho continuava lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias brancas, e se manteve na posição em que os açougueiros a deixaram. A pele pendia dos dois lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o agarrou por uma pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes ainda estremeciam. Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam as patas dos novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o guincho e lá a crucificaram; já não havia movimento’. Se essa infâmia narrada por Tolstói nos fere quando pensamos no gado, o que diremos de pessoas no matadouro?

Penso em Vargas e seu sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um boi, gado abatido qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza, porque o defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas? Ele está na sala da advogada Gardênia, quando ela lhe propõe a fuga, que corra e suma antes de ser morto, e ele se nega porque a esposa Nelinha era muito frágil? Ele está no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual possui a certeza, e para ela caminha ainda assim? ‘Nelinha está salva’, ele se fala. ‘Ela continuará a viver. Ela e a minha filhinha continuam. Venham, malditos’. E nisso, ao expressar também a crueza do seu isolamento, pois não estava ‘organizado’, sem vínculo direto com organização clandestina, onde buscar o terrorista Vargas? Desta maneira ele ficou adiante, conforme o viu a advogada Gardênia: ‘Vargas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’. Vargas teria sido puxado por corda para o matadouro? Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, esconder lesões, eufemizar a barbárie. Tudo que falam é uma adaptação do cadáver à fraude da repressão política. É nessas circunstâncias que cresce o valor do depoimento da advogada, que testemunhou e preencheu as lacunas, o vácuo dos laudos tanatoscópicos:

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‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror. A boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’.

Noto agora que a advogada primeiro se refere a um objeto, quando fala ‘caiu’. Depois corrige o impessoal pacote para ‘ele nasceu’. Me espanta que ninguém vomite ante o espetáculo da destruição da pessoa. Ninguém, vírgula, lembro. Eu vi um poeta que, em frente a prostitutas embriagadas, que se contorciam em poses obscenas, vomitar até o desfalecimento. Na ocasião, um militante leviano, dado à ironia e ao cinismo, também quase desmaiou, mas de gargalhar, em razão da repugnância do poeta à degradação. Anos depois, o zombador passou de armas e bagagens para a direita. Eu vi. No entanto agora, neste agora contínuo, há homens que leem esses relatos abjetos e viram a página. Não iremos bradar com um cajado de profeta doido contra a busca de conforto da espécie em que me incluo. Mas a esse movimento de pular a página, e empurrar até o porão a crueldade que não se quer ver, solicito uma pausa. Um minuto só de reflexão para isto: ‘mancha profunda no pescoço como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca... o feto estava lá nos pés dela, que ele nasceu, naquele horror’. Viro a página, para um canto onde medito se a esse destino comum, da nossa, que digo?, espécie, gênero de animal, se a tais violentados podemos fechar os olhos. Como se jamais tivessem existido. Nem mesmo, ó pureza da nossa fuga, como se jamais os crimes pudessem voltar a ocorrer. Se isso fizermos, não podemos no mesmo passo acreditar que os fatos corram de nós. Contra a nossa vontade e fuga, eles vêm, voltam, e estão conosco aonde formos”. 

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