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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Cabelo de preto: por isso Renato Freitas foi cassado

Negros que sustentam cabelos afro são ousados. Não deveriam, deveria ser algo corriqueiro

Renato Freitas na Câmara Municipal de Curitiba (Foto: Rodrigo Fonseca/CMC)
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"Onde já se viu um cabelo destes? Que nojeira, pior ainda aqueles cabelos trançados ou sei lá de que jeito, que uns tipo Bob Marley usam, acho que botam uma cera gosmenta, vira uma nojeira".

A frase lamentável não é tão incomum de se ouvir quanto possa parecer. Negros que sustentam cabelos afro são ousados. Não deveriam, deveria ser algo corriqueiro, cotidiano, jamais um exercício de ousadia ou afronta.

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Afirmar-se, uma atitude. Justo dizer que, como exemplo, um jovem branco que sustente um cabelo punk tipo moicano também ousa e afronta, mas aí há uma considerável falta de similitude. O jovem punk quer incomodar a sociedade conservadora, age de uma forma diferente e, o mais importante, seu cabelo espetado tipo moicano não lhe é o natural de nascença, por óbvio.

Michelle Obama alisou seus cabelos, tais quais suas filhas, ela uma negra retinta. Tim Maia e sua gang também tentaram, James Brown e tantos outros, depois se arrependeram. Seria este um ato de negação étnica? Cabe tão somente aos negros e negras comentarem, jamais a um branco ou sequer a um pardo de cabelo menos encrespado.

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As variações de cabelos de uma pessoa, um detalhe talvez. Por certo que cabelos não demonstram personalidade, aparência não demonstra personalidade, tanto quanto tal se aplica à jaqueta puída de imitação de couro cheia de arrebites e atarraxas do jovem punk, ele um branco de cabelo moicano cheio de energia morador do ABC paulista.

Quem critica ferozmente as negras que alisam cabelo e diz que elas o fazem por vaidade, que se apequene e se veja em seu adequado e devido lugar de fala. Boa parte, hoje em dia especialmente, que enxerga vaidades em outrem, sustenta em si enormes tatuagens artísticas muito bem pagas e muito bem elaboradas, cheias de sombreamentos raros que tomaram horas e horas para finalização. Uma vaidade.

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O preto Renato Freitas entrou em igreja de pretos. Entrou. Em uma igreja se entra e se sai, as portas estão abertas à rua, mendigos entram e saem. Assim não fosse não seria uma igreja verdadeiramente cristã, que professe a palavra mesma de Jesus Cristo amante dos pobres e desvalidos.

Teria Renato Freitas sido inoportuno, abusivo, destemperado? Imagine-se ao interior de uma igreja qualquer em bairro de classe média, você concentrado, orando, em paz, em delicioso silêncio interior e exterior, o frescor dominante no ambiente, o interior acolhedor da igreja, cores belas refletidas de vitrais da cúpula sob límpida luz solar.

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Você apoiado sobre o genuflexório, concentrado, cabisbaixo, tocado emocionalmente e divagando em bons pensamentos. De supetão adentram pessoas ao recinto com alguma cacofonia e em movimentação intensa. Não se incomodaria? Talvez sim, talvez não.

Você se encontra em uma repartição qualquer aberta ao público, lá aguarda na sala de espera, sentado em ordem e com a devida senha no bolso, serenamente, respeitoso, cadeiras vagas disponíveis. De supetão adentra à repartição pública, vindo da rua, um sujeito esbaforido vociferante maltrajado, falando muito e rápido, em alto volume. Diz-se um agoniado que tem fome, implorando por algum trocado, uma moeda, ou um pedaço qualquer de pão ou bolacha que seja.

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A sua impressão inicial é de forte incômodo, você disciplinado e respeitando a ordem e decoro do ambiente público, porta-se recatado e calado. Ocorre que sua forte impressão inicial talvez aos poucos mude, o sujeito esbaforido vociferante maltrajado o convenceu, ele aparenta de fato aguda e preocupante carência, sustenta um olhar cadavérico e debilitado, talvez pelo uso de pesadas drogas. Que seja, quem se droga é gente e uma hora passa fome, você pensa.

Quase impossível não haver os impactos de espanto e incômodo inicial. O mesmo de quando em vagão do metrô adentra uma desautorizada senhora pedindo esmola, ela mostra papel amassado rabiscado e conta estória triste de falecimento e carência, bem pode estar mentindo, ou não, mas é convincente.

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Há muita gente que tem faro apurado e é mais sensitiva, estes e estas percebem o por detrás dos olhos das pessoas, veem em maior profundidade, além. Não são infalíveis. Por outro lado sempre há uns bons atores dignos de premiação teatral, mas também sempre vale optar por correr um bocadinho de risco que não será jamais prejudicial às suas finanças pessoais ou ao seu estômago já saciado pelo lanche quase todo comido em suas mãos.

Renato Freitas entrou em igreja católica, fez ato político, se expressou em contexto válido num templo dedicado a um carpinteiro ativista que pisou o planeta há mais de dois mil anos. O Vaticano é escandalosamente politizado. No Brasil os padres e sacerdotes em 1964 apoiaram, depois denunciaram, e uns hoje até propagam a volta da ditadura militar ao país. Provável que tão somente não aja politicamente quem opte por viver nos ermos sob isolamento absoluto. Em qualquer sociedade as interações pessoais são, e sempre serão, objetos de cálculo e estratégia.

O cabelo de Renato Freitas, dentre os outros tipos de cabelos afro, não é dos mais comuns. Tal quais as mulheres negras que sustentam grandes cabelos crespos, os tradicionais e clássicos do Movimento Black estadunidense de décadas atrás. Estas mulheres pretas o fazem com mais liberdade, ao que parece, mas talvez prevejam também os olhares enviesados e as torcidas de narizes vindas dos brancos.

Ainda poucos homens ousam os cabelos afros mais afirmativos de sua etnia. Oxalá depois de Renato Freitas mais e mais homens negros ou pardos com cabelos crespos optem por semelhante atitude autoafirmativa, mas isto por óbvio não cabe a um branco caucasiano discorrer. Aqui comete-se uma afronta, talvez. Afro, afronta.

Oxalá. Que assim seja, mais cabelos pretos. Oxalá, Oxum, Oxóssi, Yemanjá, Xangô e demais.

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