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Carlos Carvalho

Doutor em Linguística Aplicada e professor na Universidade Estadual do Ceará - UECE.

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Cada rato tem um preço

Em meio ao caos no qual transformaram o Brasil, há quem louve torturadores e ria da interminável pilha de cadáveres que se amontoa. Em um país onde a dor do povo não importa, há quem vilipendie a Constituição Federal, emparede uma acovardada suprema corte com um mísero tuíte e, orgulhoso do feito, deboche

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Enquanto busco um lugar na estante para acomodar Todas as crônicas (2018), de Clarice Lispector, deparo-me com uma edição antiga do Febeapá – O Festival de Besteira que Assola o País, de Sérgio Porto, e penso como eram bons aqueles tempos, quando ríamos com as maravilhosas tiradas de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Porto, cujas crônicas satirizavam a estupidez e a ignorância dos políticos, militares, socialites e outras absurdetes tupiniquins. Nem todos entendiam, é claro, uma vez que a ironia cortante de Ponte Preta era pra lá de afiada. Era uma época em que também não se entendia Chico Buarque, Vandré e muitos outros nomes. Eram tempos em que muitos não queriam ver, muito menos entender o óbvio.

Da publicação do primeiro volume das crônicas de Ponte Preta, em 1966, já se vão cinquenta e cinco anos. É muito chão! Se vivo estivesse, o que diria Sérgio Porto de tudo o que está acontecendo por aqui? Talvez continuasse escrevendo suas crônicas, ridicularizando a burrice dominante. Talvez substituísse “festival de besteira” por “festival de atrocidade” ou “festival de bizarrice”. Seja como for, além de Stanislaw Ponte Preta, Sérgio Porto talvez precisasse criar outras vozes para dar conta de tanta barbaridade, tanto absurdo, tanta mentira, tanta força bruta.

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Hoje está impossível gargalhar. Nem uma crônica de Ponte Preta conseguiria fazer-nos sorrir. Não há motivo. Falta razão. Maria Bethânia disse em entrevista que é a vontade de chorar que domina, quando fala sobre o Brasil. A maior parte da nossa gente, como diz o poeta, hoje anda falando de lado e olhando pro chão. E lá se vão cinquenta e um anos da canção. Na época em que foi lançada não podíamos saber da quantidade de bacalhau, leite condensado, picanha e cerveja puro malte que comprávamos para alimentar nossos bravos guerreiros. Sobre a compra de satélites inúteis a preço de ouro? Nada. Nenhuma palavrinha. Cem anos de sigilo, cem anos de perdão. Já nossa gente, sabia-se, gemia e agonizava nos porões ao som da canção “Jesus Cristo”. Depois, sumia para nunca mais.

Em meio ao caos no qual transformaram o Brasil, há quem louve torturadores e ria da interminável pilha de cadáveres que se amontoa. Em um país onde a dor do povo não importa, há quem vilipendie a Constituição Federal, emparede uma acovardada suprema corte com um mísero tuíte e, orgulhoso do feito, deboche. Juízes e promotores esfaqueiam a República pelas costas. Nada acontece, pois estão (sempre estiveram) acima da lei. Podem copiar, colar, mentir, prender e arrebentar. Se condenam um ex-presidente com provas fraudadas para que não concorra numa eleição, imagine os “eventuais excessos” que esse tipo de gente pode fazer com você, pobre mortal. “Eventuais excessos” estes que já vimos por vinte e um anos, e deram no que deram. Não que quem defenda tal escrotice dê a mínima para quem ainda sofre sua perda, sua dor. A agonia dos mortos pela “redentora”, como dizia Sérgio Porto, não cabe num tuíte. É um escárnio! É um ataque ao que ainda resta de humano em nós. Os idiotas, definitivamente, perderam a modéstia. Empoderados estão.

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Na busca por um espaço para acomodar Clarice, deparo-me também com Ignácio de Loyola Brandão. Não verás país nenhum, diz o título na lombada. Mais à direita, já na extrema, O general em seu labirinto, de Gabriel Garcia Márquez. Gosto de títulos. Avisto Zero – romance pré-histórico, também de Loyola. Na epígrafe, trecho de “O poema pouco original do medo”, de Alexandre O’Neill, diz: “o medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos de chegar / quase todos / a ratos / sim / a ratos”. Enquanto Bethânia canta Cálice, finalmente acomodo Clarice. Olho para o lado e vejo Ratos e homens, de John Steinbeck e Os ratos, de Dyonélio Machado. Volto ao Zero. Na primeira página encontramos José, que mata ratos num cinema poeira. José é um homem comum que, assim como nós, sabe muito bem que cada rato tem um preço.

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