Caim vela Abel entre os escombros da Ucrânia
Ontem, sonhei com o interior da Ucrânia entre os escombros da Segunda Guerra Mundial
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Ontem, sonhei com o interior da Ucrânia entre os escombros da Segunda Guerra Mundial. (Quero ir para Tchernobil daqui a um mês e meio, quando farei 40 anos, então só pode ter sido a radiação, alada como um anjo, quem me trouxe o relato que ora partilho com você.)
Vejo um casebre de madeira numa clareira circundada pela taiga de árvores longilíneas, delgadas e perfiladas como um dos batalhões dos invasores alemães.
Alquebrada como a bituca de um cigarro de palha, a chaminé do casebre expele uma fumaça entrecortada como os suspiros de um moribundo.
Com seu fuzil em riste, um soldado alemão (Fritz se parece comigo!) se aproxima do casebre.
Por que ele está sozinho?
Seria Fritz um desertor?
O soldado arromba a porta do casebre com um coice e mal pode acreditar no que vê: ao invés de cadáveres de olhos esbugalhados - vítimas surpreendidas pela fragilidade da vida como morte súbita -, Fritz depara com uma mesa posta com esmero: sobre a toalha de renda, uma cumbuca de cogumelos frescos e um prato de borsch, uma sopa de beterraba, que, naquele fim de mundo ucraniano, é servida com natas, como se nuvens singrassem o céu da sopa violeta.
- Bem-vindo! Eu estava à sua espera. Sente-se para almoçar comigo - eis o que diz a camponesa Anna, com maçãs do rosto salientes e cabelos ruivos envoltos por um lenço policromático amarrado sob o queixo.
Incrédulo, Fritz aponta o fuzil para Anna, mas a jovem o desarma pousando suas mãos pequeninas e calosas sobre as mãos rudes do soldado, que quase esquecera o que é a ternura.
Quase.
- Vamos, o borsch vai esfriar, coma comigo.
Anna reparte o pão antes mesmo de oferecê-lo. Ela o embebe na sopa - envolto pelo caldo violeta, o pão mais parece uma joaninha.
Fritz não entende o sorriso de Anna - é como se não houvesse guerra, é como se, da família da moça, ainda houvesse alguém para além do retrato chamuscado que Anna insiste em pendurar no que resta das tábuas de uma das paredes crivadas de disparos.
Súbito, Anna resvala o falo do fuzil com mãos e olhos ávidos, no que Fritz engatilha a cara e a arma como uma naja prestes a dar o bote. É quando Anna pousa a ponta do indicador direito nos lábios do soldado e avança em sua direção, irresistivelmente, como um decreto imperial de Catarina, a grande.
Em meu sonho, o beijo de Anna e Fritz é pintado por Gustav Klimt. Entretanto, quando eu tento prolongar o amor entre os escombros, o casebre é invadido ainda uma vez:
- Mas o que é isto, soldado?!
Um oficial com os coturnos enlameados e o quepe com a caveira da SS nazista condena o beijo de Gustav Klimt como o beijo de Judas.
- Desertor! Traidor!
Antes de conseguir fuzilar Fritz e condenar Anna à viuvez mais rápida da guerra, o carrasco da SS tomba com uma bala que lhe rasga o crânio - Ivan Ivânovitch, oficial do NKVD stalinista, invade o casebre pela última vez.
Ivan Ivânovitch desarma Fritz, golpeia-o com fúria e cospe em Anna:
- Desertora! Traidora!
Ora, Fritz é desertor e traidor, Anna é desertora e traidora… Afinal, a quem a guerra não deserda, a quem a guerra não trai?
Fritz e Anna se ajoelham e clamam, em vão, pela vida.
Ivan Ivânovitch se senta à mesa, saboreia o borsch salpicado com o sangue do oficial nazista e, após embeber um cogumelo com o último resquício da sopa, o oficial stalinista fuzila Fritz e Anna.
Ivan Ivânovitch, no entanto, não conseguirá sair do casebre.
Em meu sonho, a porta do casebre está lacrada, e o carrasco precisará olhar para o abraço definitivo de Anna e Fritz, como Caim a velar Abel.
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