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Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora, entre outros, de Tortura e sintoma social (Boitempo, 2019)

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Capitalismo versus… o que?

"Um comentário crítico da coluna 'Liberdade, igualdade, fraternidade' de Contardo Calligaris publicada no jornal Folha de S. Paulo", escreve a psicanalista Maria Rita Kehl

O capitalismo deu certo? Pilhagem/Brasil. Verdade ou mentira... (Foto: REUTERS/Paulo Whitaker)
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Por Maria Rita Kehl 

(Artigo originalmente publicado no site A Terra é Redonda)

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Li, com o interesse de sempre, a coluna de Contardo Calligaris no jornal Folha de S. Paulo no dia 5 de março. O tema é tão importante que tive vontade de entrar no debate. No caso, para discordar de alguns pontos que alicerçam os argumentos do colega psicanalista. O que é raro: concordo quase sempre com o que ele escreve. Aprendo a pensar melhor com a leitura de suas colunas, pois Contardo preserva a prática iluminista, antidogmática, de expor ao leitor o percurso de seu pensamento. Pensamos “junto com ele”. No caso da coluna “Liberdade, igualdade, fraternidade”, pensei e… discordei.

De acordo com seu argumento, é como se não houvesse alternativa ao capitalismo tal como ele se encontra hoje na quase totalidade dos países do planeta. E como se as experiências “socialistas” de Cuba e União Soviética, para não falar da Coréia do Norte, provassem que não é possível se pensar em alternativas para o capitalismo. O qual, diante disso, se torna cada vez mais selvagem.

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Começo a dizer que discordo da polarização proposta pelo colunista. Igualdade (no socialismo) vs liberdade (no capitalismo). Se assim fosse, eu escolheria de olhos fechados a liberdade. Bom, convenhamos que para mim é fácil: estou na ponta privilegiada do capitalismo. Assim como ele e outros profissionais liberais, não tenho patrão. Nem salário garantido, claro, mas este é o preço de minha liberdade. Assim como outros profissionais liberais, nos momentos de crise econômica somos obrigados a trabalhar muito mais, pois as pessoas que atendemos nos pedem, com razão, para pagar menos.

Ainda assim, somos sortudos. Não temos patrão. Ninguém explora nossa força de trabalho, ninguém (a não ser nós mesmos) nos impõe jornadas exaustivas, ninguém nos ameaça de demissão quando tentamos resistir contra perdas salariais – ameaça cada vez mais real diante da fila dos desempregados batendo a porta de nosso empregador. Estes que, no desespero, aceitariam (e aceitam) ocupar nossa vaga, em condições ainda piores do que aquelas que recusaríamos ao patrão por achar abusivas. É nas crises econômicas que o regime capitalista mostra seu potencial de crueldade.

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Por outro lado, a polarização Capitalismo x Socialismo abordada na coluna “Liberdade, igualdade, fraternidade” excluiu os países socialdemocratas, onde ainda é possível conciliar a redução da desigualdade com o pleno direito as liberdades individuais.

O Brasil, onde nós, das classes médias urbanas, desfrutamos de liberdades de escolha quase plenas, ainda não erradicou completamente o trabalho escravo. Os direitos trabalhistas das empregadas domésticas, instituídos por lei em 2013, certa vez foram contestados pela escritora Danuza Leão com o seguinte argumento: “…e se meus amigos velhinhos quiserem tomar um chá as 11 da noite? Não teriam esse direito?” Pensei em responder que, sim, talvez antes de começarem a conceder à serviçal o direito à jornada de oito horas, ela precisaria ministrar aos patrões duas ou três aulas sobre como se prepara um chá…

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Não escrevo essas coisas para “ensinar” o que quer que seja a meu colega psicanalista e escritor. Trata-se de levar o debate adiante, na boa tradição iluminista em que incluo, por minha conta, o pensamento livre de Contardo Calligaris.

Hoje, é fácil criticar o socialismo cubano, por exemplo. Isolada, pelo bloqueio norte americano, dos países com os quais poderia ter intercâmbio comercial, Cuba tornou-se um país muito pobre. Mas ao chegar no aeroporto de Havana, o viajante se depara com um cartaz que diz: “No mundo todo, hoje, milhões de crianças dormem na rua

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[perdão, não me lembro da cifra exata]

. Nenhuma delas é cubana”. Bom, propaganda cada um faz quanto quer. Só que, nesse caso, é verdade. Assim como também não há, em Cuba, crianças fora da escola.

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Já no Brasil de hoje, um número cada vez maior de famílias vive nas ruas. Algumas perderam a casa recentemente: ao lado das sacolas e dos cobertores, o pedestre topa com colchões ainda em bom estado, um fogãozinho, livros escolares… desolador. O Brasil nunca foi comunista, nem espero que venha a ser. O grito de guerra da classe média irada contra os petistas – “vai pra Cuba!” – é ignorância ou má fé.

O Brasil, nos governos de esquerda moderadíssima do ciclo petista, não foi, nem de longe, “cubano”. Mas conseguiu promover alguma redução de desigualdade. Conseguiu incluir jovens negros, descendentes de escravos, nas universidades – com bom desempenho, por sinal. Conseguiu demarcar algumas terras indígenas, como a Raposa Serra do Sol, hoje ameaçada pela ganância do agronegócio. Conseguiu levar atendimento médico de qualidade a periferias e lugares isolados onde os médicos brasileiros não queriam trabalhar. Eram médicos cubanos. De excelente formação, por sinal. Mandados de volta em 2019, claro.

E por falar em Cuba… certa vez, num programa Roda Viva da TV Cultura, uma jornalista perguntou ao escritor cubano Leonardo Padura se ele tinha liberdade para escrever o que quisesse, em seu país. Ele respondeu: “tenho, sim. E essa pergunta, foi pensada por você ou seu editor mandou que você fizesse”? A moça engoliu em seco. Era jornalista do Estadão. O mesmo jornal que em 2010 cancelou minha coluna quando eu defendi – o que? O comunismo? Não: o Bolsa Família, modesto e eficiente instrumento de redução da miséria instaurado por lei aprovada pelo Congresso Nacional em 2004.

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