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Adriana Bebiano

Professora Associada do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC). Também é investigadora associada do Centro de Estudos Sociais (CES) da mesma Universidade

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CES: justiça e responsabilidade

Processos de teor inquisitorial resultam uma enorme injustiça. Quem defende os direitos humanos de forma consequente só pode considerar escandaloso e indigno

CES: justiça e responsabilidade (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

A luta pelos direitos humanos das mulheres tem conhecido diversas fases, adquirindo destaque questões diferentes em contextos históricos e políticos específicos. O combate ao assédio e à agressão sexual tem vindo a ocupar um dos lugares do topo da pauta feminista desde outubro de 2017, quando eclodiu o movimento #metoo, o qual, principalmente através da sua disseminação nas redes sociais, criou a consciência da violência sexual contra as mulheres enquanto fenómeno estrutural das sociedades ocidentais, durante séculos silenciado e sempre descredibilizado. Foi nesta conjuntura, nacional e internacional, que, em abril de 2023, emergiram publicamente acusações neste âmbito contra investigadores do Centro de Estudos Sociais, que conduziram à elaboração de um relatório por uma comissão independente (CI), tornado público a 13 de março deste ano, e razão direta para esta reflexão.

Todas as denúncias de assédio sexual e assédio moral devem ser rigorosamente investigadas. Todavia, num Estado de Direito existe sempre presunção de inocência: as pessoas denunciadas têm direito à mesma proteção que as pessoas denunciantes, até que a justiça chegue a conclusões, fundadas em prova documental, sobre a sua efetiva ou eventual culpa. Judith Butler, filósofa de grande reconhecimento no contexto dos estudos feministas, chama precisamente a atenção para a vulnerabilidade da existência de todos os seres humanos, bem como para a necessidade do exercício da responsabilidade de cada pessoa perante outra, numa dinâmica interrelacional sempre situada. Acresce ainda que a ética feminista do cuidado – a cientista política canadiana Joan Tronto é aqui uma referência importante – defende o cuidado nas relações interpessoais como sempre mais importante do que o recurso a princípios abstratos na leitura de situações concretas.

Sou investigadora do CES desde 1997, fui membro da sua direção entre 2000 e 2002 e presidi ao seu conselho científico entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2022. Nestas quase três décadas, e durante o desempenho de dois cargos de elevada responsabilidade, jamais me foram comunicadas quaisquer situações de assédio (embora estas pudessem de facto ter ocorrido). O CES era uma instituição com práticas democráticas e baixa conflitualidade.

Vi com espanto pichagens a falar de assédio serem inscritas nas paredes do CES entre 2017 e 2018, e surpreendeu-me o artigo “académico” de 2023, frequentemente referido, creio que muito pouco lido – de modo algum de teor científico, e retirado pela editora justamente porque continha matéria considerada difamatória – que espoletou a situação que dura há dez meses, e da qual a comunicação social tem feito eco, frequentemente com muito pouco rigor e de forma parcial.

Entendi então que a própria instituição CES providenciaria o esclarecimento cabal da situação. E, de facto, foi constituída uma CI com o objetivo de proceder a um diagnóstico e de aferir eventuais medidas a tomar. Fiquei – quase todas as pessoas do CES ficaram – em silêncio, como na altura foi pedido a todas as investigadoras e todos os investigadores, confiando nas averiguações em curso. Foram dez meses de espera e de muita perplexidade.

Quando, a 13 de março, a CI apresentou o seu relatório à comunidade (https://www.publico.pt/2024/03/13/ sociedade/noticia/hierarquia-ces-propiciou-assedio-abuso-conclui-comissao-independente-2083512), na verdade não houve clarificação. Parece-me que esta fez um trabalho honesto, ainda que discorde de algumas das recomendações, nomeadamente no que diz respeito às dinâmicas de organização da academia, cujas especificidades e regulamentação parece desconhecer. Das narrativas comparadas de pessoas denunciantes e pessoas denunciadas, a CI identifica no referido relatório “indícios de situações menos próprias”, não tendo disso dado provas (não sendo um órgão judicial, naturalmente que elas não lhe eram pedidas). A partir destes “indícios”, nos media e nas redes sociais, procedeu-se de imediato a um julgamento sem culpa formada, e sem que as pessoas denunciadas tivessem direito a um imprescindível contraditório.

Nos media e nas redes sociais, procedeu-se de imediato a um julgamento sem culpa formada, e sem que as pessoas denunciadas tivessem direito a um imprescindível contraditório. Desde logo, porque não têm um conhecimento claro e objetivo sobre o que são acusadas – aspeto que muito do que se tem escrito sobre o caso omite – nem mesmo por quem.

Desde logo, porque não têm um conhecimento claro e objetivo sobre o que são acusadas – aspecto que muito do que se tem escrito sobre o caso omite – nem mesmo por quem. Fundados no anonimato e em rumores, estes processos de teor inquisitorial resultam uma enorme injustiça, que quem defende os direitos humanos de forma consequente só pode considerar escandalosa e indigna. O anonimato das pessoas denunciantes foi apenas quebrado a 20 de março último, numa carta de um “coletivo de mulheres do CES”, pela primeira vez assinada, por 13 pessoas. A carta lê – ou treslê – o relatório da CI de forma a confirmar as suas denúncias, enumerando o tipo de ações abusivas, sem referentes concretos – não sabemos por quem, ou contra quem especificamente – que permanecem por provar. Espero que, uma vez a documentação recolhida seja entregue ao sistema judiciário, a verdade dos factos possa então ser aferida, se faça realmente justiça e haja enfim tranquilidade.

É difícil, como se sabe, fazer sentido da multiplicidade de narrativas que são fortemente emotivas e sem referentes concretos. Há, em todo este processo, um fenómeno de “psicologia de massas”, que comporta muita desumanidade e irracionalidade, e que merecerá ser estudado no futuro. Quando tudo estiver claro. Quando o CES puder voltar a ser um espaço de investigação e de debate sérios, com responsabilidade e atenção a todos os direitos humanos.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.