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Roberto Amaral

Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004

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Como as democracias se suicidam

"Recolhendo plataformas e renunciando a princípios, os partidos perderam identidade e submergiram na geleia geral cuja característica é a desmoralização do espectro ideológico: de noite todos os gatos são pardos", diz o cientista político Roberto Amaral; "O centro foi absorvido pela direita e a esquerda colhe hoje os frutos da descrença das massas na política e ainda está por avaliar sua contribuição para esse processo"

(Foto: Marcos Correa/PR)
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Um tema que fica para os psicanalistas da alma social: explicar a transição do amor ao ódio político

Sobre ser um belo e bem realizado documentário, “Democracia em Vertigem” é instigante ensaio sobre o processo político contemporâneo e nos sugere algumas reflexões a propósito dos caminhos e descaminhos da democracia brasileira, sempre forcejando por conquistar espaço e pouso em nossa história de país, nação e Estado (assim nessa ordem) autoritários.

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Pois democracia, entre nós, mesmo se nos ativermos aos valores do Iluminismo, não passa de um sonho que os mais otimistas vão transmitindo geração por geração…

Planta rara e frágil em terreno hostil, ela medra por algum tempo para ser logo descartada sempre que assim o exijam os interesses da casa grande.

Esse descarte se opera sob as mais diversas formas, desde os golpes de Estado clássicos que ilustram a vida republicana – sempre com a caserna na primeira fila -, seja, como agora, mediante um processo razoavelmente longo que, começando em 2013, culminaria com a eleição de Bolsonaro em 2018, caminho lavrado para a instalação do atual regime, inominado, mas de irrecusável caráter autoritário e decisiva presença militar.

Um estranho regime populista de extrema-direita e vinculação militar que renega a até aqui saudada tradição nacionalista das Forças Armadas, a defesa do Estado nacional (compreendendo suas riquezas) e do desenvolvimento, tradição, portanto, incompatível com o governo a que emprestam solidariedade.

Outra questão trazida pelo documentário é a análise ao que – concordemos ou não – identifica como fracasso político do lulismo e das estratégias das esquerdas de um modo geral, “surdas e cegas” para identificar as modificações que, a um palmo abaixo do nível do mar, se processavam no tecido social.

Petra Costa, a diretora de “Derrapada…”, procura explicações para o fato de as popularidades de Lula e Dilma, o primeiro deixando o governo com mais de 80% de aprovação e a ex-presidente contemplada, no governo, com mais de 70% de apoio popular, após uma dura reeleição, se transformarem, com o PT, em focos do ódio das grandes massas que das ruas caminharam para as urnas elegendo um presidente cuja plataforma agredia tudo o que até então se conhecia como os valores centrais do povo e da sociedade brasileira.

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Um tema que fica para os psicanalistas da alma social: explicar a transição do amor ao ódio político.

O tema é velho como a Sé de Braga, e persegue os partidos de esquerda (e os sindicatos) no governo, quando sem linha clara sobre seu novo papel: a diferença entre partido no governo e partido do governo.

Gilberto Carvalho, um observador-ator lúcido – foi dos primeiros a não negligenciar as primeiras manifestações hostis das grandes massas – lembra, ainda no documentário de Petra, que seu partido (o PT) esqueceu a regra dos ‘dois pés’ que assim define: um pé na sociedade (‘pois no capitalismo os avanços se dão na luta social’) e um pé na institucionalidade, para avançar por dentro, na medida do possível.

E arremata: o PT tirou o pé da sociedade e fincou os dois na institucionalidade e aí aceitou o jogo que condenava e fez as alianças com as oligarquias conservadoras que abjurava como responsáveis pelo nosso atraso.

Fez mais, é preciso acrescentar, ensarilhou programas, conteve a vida sindical e o movimento social.

Por erros próprios, os sindicatos perderam a capacidade de organizar e mobilizar os trabalhadores, e os partidos entraram em grave crise de representatividade.

Recolhendo plataformas e renunciando a princípios, os partidos perderam identidade e submergiram na geleia geral cuja característica é a desmoralização do espectro ideológico: de noite todos os gatos são pardos.

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O centro foi absorvido pela direita e a esquerda colhe hoje os frutos da descrença das massas na política e ainda está por avaliar sua contribuição para esse processo.

Petra não entende porque ninguém (diz ela) percebeu as mudanças então em curso; ela mesmo reclama da surdez e da cegueira que não lhe permitiram antever a emergência da direita.

Dilma, em depoimento, lamenta não haver o PT compreendido o significado da eleição de Eduardo Cunha e as mudanças políticas que, na sua opinião, se operaram mais profundamente a partir de 2014.

O fato objetivo é que as forças populares, antes da queda do governo, já haviam perdido a liderança do processo político.

Lula, num quarto de hotel em Brasília, é quase patético diante da falta de apoio parlamentar ao não impeachment. Dilma é contundente quando declara: “Eu não governei em 2015”!, título, subtítulo e texto da crônica de um fracasso que, embora antevisto, não pôde ser evitado, como as tragédias gregas.

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No presidencialismo de coalizão um presidente sem maioria perde condições de governar.

Acossado entre o desamparo das massas e a hostilidade do Congresso, o governo não tem futuro: a aliança conservadora – o trunfo da governabilidade de Lula – estava perdida e as forças populares não tinham mais capacidade de mobilização em defesa de seu governo.

Encerrava-se, com Dilma, um longo ciclo de 13 anos de governo de centro-esquerda, sucedido por um outro, que o nega, porque pretende ser o seu contrário. Inicia-se – repito: inicia-se, está em seus primeiros momentos – o primeiro ciclo populista de extrema direita oriundo do processo eleitoral.

Um ciclo que, mais do que suceder ao anterior, diz-se ser sua consequência.

Nas Forças Armadas o capitão, candidato dos militares, constrói sua própria base e ela tende a autonomizar-se, articulada nos quartéis como um ‘partido’. A essa base alia-se sua ainda alta capacidade de mobilização popular, a que não falta o apoio do pentecostalismo fundamentalista, como se viu recentemente em São Paulo com a Marcha para Jesus. No fundo, o ‘mercado’, à espera das privatizações e da ‘reforma’ da Previdência. A uni-los a necessidade de afastar o petismo do poder.

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Quase ao fim de seu belo documentário, Petra nos traz talvez o mais didático dos depoimentos, com a fala de uma mulher do povo, uma trabalhadora anônima, uma das muitas encarregadas da difícil limpeza das entranhas dos Olimpos.

Ela começa lamentando que seu ofício nas escadarias e os mármores do Palácio da Alvorada, já sem os seus inquilinos, não pudesse ser aplicado na política brasileira (‘pois tudo limparia’), e, depois de admitir a responsabilidade de Dilma (“ela fez por merecer”), afirma que ‘uma nova eleição seria melhor’, que o impeachment não fôra uma escolha do povo, que o processo (não usa essa palavra) não foi democrático, e, falando numa sequência sem interrupções, termina por admitir que não existe democracia no país.

Fica a questão.

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*Pergunta que não pode calar: quem mandou matar Marielle?

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