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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Confesso que sobrevivi... e sinto culpa

O trigo da gratidão e o joio da culpa se abraçam como náufragos que têm apenas um bote salva-vidas, escreve Flávio Ricardo Vassoler, em sua crônica

(Foto: Luanna Falcão)
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A partir do dia 22 de junho de 2021, pessoas com mais de 37 anos começaram a ser vacinadas aqui em Portugal. Aos 42 do segundo tempo de meus 39 anos, uma enfermeira gentil e de olhos delineados com delicadeza aplicou, em meu braço esquerdo, a dose única da Janssen, uma das quatro vacinas que, por ora, estão sendo ministradas na União Europeia.

Depois de lhe dar um abraço e um beijo no cocuruto (ela era baixinha), eu lhe disse com os olhos marejados:

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– Você, a cidade de Braga e o Sistema Nacional de Saúde português salvaram a minha vida! Em nome dos meus pais, de quem eu sinto saudade todos os dias, muito obrigado – e que Deus te abençoe!

Lágrimas graúdas irromperam e lhe borraram o delineador como gotas de orvalho sumamente gratas por serem esfaceladas pelos pés descalços de uma criança que corre pela campina. 

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Ela pousa a mão no meu ombro e tenta me dizer algo (consigo sentir seus lábios trêmulos sob a máscara). É quando eu lhe digo que pessoas como você, Maria, trazem à tona, uma vez mais, a latência da fé que eu ainda tenho nas pessoas. Uma fé pisoteada pelos nossos tempos doentes; uma fé que dorme no ventre de uma semente aparentemente sem vida. Quando a luz do sol logra se esgueirar por uma fresta qualquer da escuridão (a esperança é uma súplica para que a muralha não seja de todo compacta), o ímpeto da flor irrompe do coração da semente como a vida que não quer renunciar a si mesma. 

– Maria, muito obrigado! Saiba que 500 mil pessoas no Brasil gostariam de lhe dizer o mesmo... 500 mil pessoas, meu Deus... 

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– Eu penso nisso todos os dias... Por que nós, logo nós, sobrevivemos? 

As fotos simplesmente aterradoras das valas comuns apinhadas de vítimas do coronavírus, em Manaus, me vêm à memória. Nós – Maria, eu e você que me lê – não estamos lá. Por quê? 

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Quem nos ama não foi impedido de nos velar, como o jovem palestino que, na Cisjordânia, escalou até o parapeito da janela do quarto do hospital em que sua mãe fora internada com Covid para lhe dizer adeus atrás de um vidro translúcido, que permite o aceno, mas não o afago. (Quem disse que a matéria inanimada também não é capaz de sadismo?) Ora, meu Deus, por quê? 

Por que, em Manaus como em Quito, no Equador, pessoas foram asfixiadas nas macas e mesmo nas ruas sem o amparo mínimo da centelha da vida que é o oxigênio? Me vêm à mente, como punhaladas, os olhos inchados, quase saindo das órbitas, e a pele amarela e percolada à caveira que seremos de quem luta para respirar, com as últimas forças, como uma tilápia que se debate tresloucadamente no samburá, mas não consegue resistir. 

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Você pode me trazer as razões, neoliberais e neofascistas, para esse holocausto contemporâneo. Mas por que a heroína Maria, eu e você ainda estamos aqui? 

Confesso que sobrevivi... e sinto culpa. 

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O trigo da gratidão e o joio da culpa se abraçam como náufragos que têm apenas um bote salva-vidas. 

Nunca, nem de longe, e graças a Deus, eu passei por situações infernalmente apocalípticas (por que não, meu Deus?) como o judeu romeno Elie Wiesel, sobrevivente de Auschwitz. 

Elie Wiesel não apenas sobreviveu a 1 milhão e meio de irmãos e irmãs aniquilados pelo maior cemitério dos vivos da história humana. Elie Wiesel sobreviveu ao próprio pai, que, extenuado, urrava o nome do filho enquanto era espancado pelos carrascos da SS nazista. Ao optar, espasmodicamente, pela sobrevivência (“Eliezer, meu filho, me ajude, onde você está, Eliezer?”), Elie Wiesel não apenas não pôde salvar o pai como passou a carregar, para o resto da vida, o fardo de não ter morrido com ele. 

– Deus merece perdão? – assim pergunta Elie Wiesel em seu livro Noite, obra que tem uma lápide, não um título. 

Ora, é sempre noite, do contrário não precisaríamos da luz. 

O sobrevivente Elie Wiesel sabe que não dá para apagar a culpa (ela não tem interruptor). 

Sempre que tenho pesadelos em que sobrevivo a meus pais em um naufrágio, acendo a luz, suado, e sinto o tremor de quem, nessa hora, se arrepende de ter nascido. 

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer certa vez sentenciou, em O mundo como vontade e representação, que a única compaixão de um Deus que, para ele, nunca houve teria sido o nada eterno, o vácuo infinito, a não-criação. O pressuposto da vida é a lágrima, como bem sabe o bebê que toma um tapa no bumbum ao nascer (bem-vindo ao deserto do real). Sem vida, sem dor.

Acontece, Schopenhauer, que nós estamos aqui. 

Confesso que sobrevivi... e sinto culpa. 

Compatriota de Schopenhauer, o filósofo Friedrich Nietzsche entreviu certa vez, em seu ensaio Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, que o ser humano que se sabe para a morte (ou que, eventualmente, sobrevive) sente uma inveja ontologicamente insuperável da vaca que pasta – e se esquece. A vaca é a cada instante – a bem dizer, a vaca, em seu esquecimento que rumina e não remói, é o próprio instante. 

Acontece, Nietzsche, que nós estamos aqui, nós nos lembramos – e eu não consigo me esquecer. 

Em sua autobiografia Lanterna mágica, o cineasta sueco Ingmar Bergman, que gostava muito de viver, se lembra de que o compositor alemão Johann Sebastian Bach suplicou a Deus, do fundo de sua felicidade sitiada, que lhe perdoasse (isto é, que não o culpasse...) por continuar a extrair alegria da vida, mesmo após ter encontrado a esposa e os filhos sem vida ao voltar para casa. 

Estaria Bach pedindo perdão pela alegria egoísta de ter sobrevivido? Mas será que os mortos quereriam que fôssemos solidários à sua partida? Se tivessem sobrevivido, eles, provavelmente, diriam que não. Se tivessem sobrevivido... 

Há algumas semanas, uma aluna que se tornou uma amiga querida me mandou uma das mensagens mais tristes que já recebi. 

Um casal de amigos falecera vítima do coronavírus. Em duas semanas (primeiramente o pai, depois a mãe), uma criança de 13 anos e outra de 10 ficaram órfãs... da vida. 

Infância erradicada por decreto – decreto de quem? 

Senti muita compaixão pelas crianças e procurei, do fundo da minha fé (ou será do fundo do meu consolo/culpa de quem sobreviveu?), lhes transmitir ímpeto e sentido, porque nós não apenas vivemos, nós buscamos, a cada manhã, um sentido para viver – para continuar a continuar. 

Só que eu sobrevivi – e elas, também.

Espero e acredito, com o que há de mais telúrico e piedoso em mim, que essa vida não seja um mero punhado de pó. Acredito e espero que sejamos pólen. 

Se as vítimas me dissessem (se elas pudessem me dizer) que tudo isso não passa de subterfúgios de quem se vacinou e, por ora, logrou sobreviver, eu só poderia dizer:

– Perdão. Eu não vou me esquecer de vocês.

Ilustrado pela artista visual cearense Luanna Falcão, que hoje mora em Tallinn, capital da Estônia. Siga seu Instagram: https://www.instagram.com/luanna.artworks/

Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019) e Metamorfoses, os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). É colunista do site Brasil 247, para o qual escreve ficções, semanalmente, sobre sua experiência nômade no continente europeu. Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

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