Crônica: o frio e a morte nos campos e na cidade
"A Várzea dos Automóveis amanhece especulando nos jornais com a alta do preço da carne, com a destruição do sorgo e o aumento do preço da ração, e com cristais nos campos e mortos na porta dos comércios"
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A massa de ar polar acaricia os pés do planeta em movimentos circulares. De luvas enevoadas e brancas esfrega gelo na plantação de sorgo. As bananeiras amanhecem queimadas, sob a ardência fria das mostardas; as penas carnavalescas de suas grandes folhas estão ao mesmo tempo murchas (para o toque) e ressequidas (ao olhar), pardas; a nebulosa do frio, ciclônica, enregela as almas das plantas, que se mantêm com os caules de pé e as folhas caídas, um campo de velas com chamas eretas e cera derretida; passam a noite lutando contra o anjo do frio e assim, desesperadas, emulam um fogo falso, interior, um fogo invertido e apócrifo, que arrancam da ideia mais extrema da geada.
As corujas buraqueiras pulam até as tocas e ali se fecham, feito novelos cujos nós o calor apenas com muito esforço desata, um a um, e expiram fumaça pelos bicos. Os teiús e os lagartos verdes se convertem em basiliscos e se petrificam, a fiada irregular de suas escamas se espremem, com um rejunte de frio, protegendo o burgo de gelo daquela carne branca. Os animais não comem; a morte, porém, incapaz de jejum, faz vibrar, tremer, debater-se, e então colhe mais um sorgo de silêncio, um pedaço de coisa parada, fora do tempo, e que deve voltar de algum modo ao mundo frenético das metamorfoses.
A natureza se suspende. Há apenas um único evento, a luta dos vegetais contra a geada flamejante.
Nas tocas, bactérias ciliadas, saídas de um sonho de Gaudí, lantejoulas vivas, vírus com o formato mecatrônico de transístores saem das órbitas dos corpos em nuvens de vapor, vagam em um mundo pestífero, desconhecido, hostil, no éter desnutrido da nossa realidade, e são sugados pelos funis negros de uma carnosa narina de couro, úmida e fendida ao meio.
Mas na Várzea dos Automóveis o frio despe sua luva de névoa e percorre as ruas em falanges de carroças assírias, há muito tempo mortas, e seus fantasmas passam a fio de espada homens, mulheres, crianças e cães; nos pés da catedral, a lâmina, cega, corta com dificuldade primeiro os dedos, depois os pés e as mãos; e então entra no corpo convulsionado e sobe pela medula, derruba o meticuloso xadrez de torres das vértebras. A velha Assíria impiedosa, tributadora, ativa, transformou-se pelo espelho da morte em uma Mesopotâmia branca, contrária à tributação, passiva e não mais intolerante, porém tolerante com o absurdo. E como algo somente se transforma em oposto se mantiver um núcleo de identidade com o que fora, a nova Assíria do frio imita a ancestral, que enviava à guerra construtores e artesãos, para que soubessem como destruir as fortalezas inimigas.
A Várzea dos Automóveis amanhece especulando nos jornais com a alta do preço da carne, com a destruição do sorgo e o aumento do preço da ração, e com cristais nos campos e mortos na porta dos comércios.
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