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Lelê Teles

Jornalista, publicitário e roteirista

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De frente ao júri, ela beijou seu assassino

é certo que ele não a matou, mas isso não faz dele menos assassino, porque o seu gesto homicida e tirano arrancou-lhe a vida; e viver sem vida é a pior de todas as mortes

Vítima beija assassino (Foto: Vítima beija assassino)
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aconteceu no Rio Grande do Sul, acontece em diversos lugares do mundo, acontece o tempo todo.

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jamais deveria acontecer.

é certo que ele não a matou, mas isso não faz dele menos assassino, porque o seu gesto homicida e tirano arrancou-lhe a vida; e viver sem vida é a pior de todas as mortes.

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eram namorados e, como namorados, namoravam às tardes como os gerânios namoram os raios de sol que os aquecem; instintivamente.

eram, essa é a verdade, beijados pelos instintos quando suas bocas se tocavam a trocar salivas.

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mas também, eram afagados pelos sentimentos que vão se construindo além das eternidades, movidos pela diacronia crônica das relações que são formatadas pelo uso, pelos costumes, pelo atavismo que criou o homem e a mulher e fez deles um destino.

uma artificialidade travestida de coisa natural.

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o casal, enfim, sentia aquelas sensações primevas das primaveras juvenis que forma e deforma casais.

se amavam, em uma palavra.

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até que, no homem, revelou-se aquilo que se revela no homem quando ele está numa relação construída por essas questiúnculas diacrônicas; dentro dele existe um macho, um macho branco, um ser inatural, um animal social erguido dos escombros psicológicos de uma raça amedrontada que provoca pavor e medo em outras raças, fazendo de sua fraqueza uma grande força.

ganharam o mundo, esses machos brancos, matando e escravizando homens, subjugando a natureza, objetificando animais e estuprando mulheres.

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e chamam isso, desavergonhadamente, de descoberta... ou conquista.

uma dessas façanhas foi um satélite longínquo. chegaram sem ser convidados, enfiaram uma estaca fálica no terreno infértil e anunciaram a conquista.

como se vê, são uns cavalheiros.

nas relações, ditas afetivas, essa fraqueza se revela pelo temor do outro, o macho que fareja a sombra de outro macho a roer-lhe a alma, como as traças roem orelhas de livros.

e pelo temor da outra, de sua subjetividade, suas vontades, sua liberdade; sua humanidade, para ser mais claro.

o temor da alteridade é a grande paúra dessa rapaziada.

em algum momento de um relacionamento a dois, certos machos percebem nos olhos de uma mulher o vislumbre de algum sonho, enxerga nos olhos dela o brilho imaginado de alguém que deseja e que traz no corpo o pecado de ser desejada.

esse é o ponto.

então, numa tarde cheia de luz, com aves namorando sob a copa das árvores, na pacata cidade de Venâncio Aires, no centro do Rio Grande do Sul, o homem sacou uma pistola e disparou sete projéteis contra sua amada, cuspidos do cano frio e fálico; cinco deles invadiram o corpo da mulher, quentes, rasgantes, homicidas.

o corpo, dela, tombou no chão, o mesmo chão que um dia há de engoli-lo.

mas ainda não foi dessa vez.

o cabra retirou-se em fuga.

ela sobreviveu.

sobrevieram os julgamentos. primeiro os do povo, juízes cruéis e impiedosos: “alguma coisa ela fez para tê-lo levado a tão infame ato”, arrotavam uns; “o homem suporta muita coisa, mas não suporta tudo”, grasnavam outros.

meio ano depois, um corvo togado enviou o covarde valente a juri popular.

ou seja, os mesmos julgadores de primeira hora, agora, são chamados para a sentença final, como se, embrulhados pela sombra sombria e assombrosa de uma corte, aqueles anônimos fossem iluminados por um método, por uma fria e calculada isenção, como se, na corte, fossem capazes de fazer um outro recorte.

ali, a mulher, objeto do julgamento social, encontraria o homem abjeto que tentou matá-la.

e então, o teatro veio abaixo.

ela, frente a frente a seu agressor, o perdoa e, mais que isso, num gesto trágico e fatal, envolve-o em seus braços e o beija com ternura; um ósculo silencioso e eloquente.

culpou-se pelos desvarios do outro.

acontece sempre, acontece em todo lugar; não deveria acontecer nunca.

há as que julgam o feminicídio, ou a sua tentativa, como um gesto extremo de desespero, uma demonstração desviante de amor: um amor não correspondido, um amor ferido, um amor abandonado...

sabemos que o feminicídio nunca é sobre amor, é sobre posse e poder.

assim como o estupro, como nos ensinou a antropóloga Rita Segato, nada tem a ver com sexo, porque não é um ato erótico, é uma demonstração de força e poder.

e o poder, você bem o sabe, é o viagra dos energúmenos.

jamais saberei o que se passa na cabeça daquela mulher, é preciso ser um escafandrista para mergulhar tão fundo; mas imagino o que se passa na cabeça daquele homem.

sou um homem, conheço os nossos códigos, sei como somos treinados para sermos o que somos.

somos um ser que mata.

e que queremos, por tudo nesse mundo, ter a posse, ser o dono, botar o pau na mesa e dizer quem manda.

por isso, o homem manda e desmanda, mata e desmata.

o homem, o belicoso, é um animal perigoso.

palavra da salvação.

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