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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Dilma sendo comparada a Bolsonaro - o que restou da igualdade (2)

Sejamos claros: faça o que fizer, governe como governar, mudando inclusive de caráter, Bolsonaro nunca, jamais, será sequer comparável a Dilma ou a Lula

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Não passa semana sem que algum jornal estabeleça a fatal semelhança entre Bolsonaro e o PT. Embora nossa indignação não se enfraqueça, estamos nos habituando às relações de suposta identidade entre, digamos, Bolsonaro e Lula, Bolsonaro e Dilma. Quem conhece a história, tanto do partido quanto dos dois ex-presidentes, sabe que a comparação é infundada, ofensiva. Mas, em que se fundamenta? A pergunta que devemos nos fazer: como é sequer possível tal comparação?

A resposta pode vir, inesperada, de um procedimento narrativo.

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Houve, no campo da Teoria Literária, certa definição de personagens que, embora não totalmente cabível, foi por muito tempo utilizada para se compreender narrativas: o personagem esférico e o personagem plano. A divisão é algo esquemática e, talvez por isso mesmo, útil.

Personagens planos são aqueles a que não damos profundidade; que não se alteram no curso da narrativa; que são psicologicamente rasos e, portanto, falsos, sem vida. São caricaturas. Personagens esféricos seriam aqueles dotados de instabilidade, capazes de mudança, que tivessem em sua psicologia o indeterminado que sabemos reconhecer em tudo o que é vivo. São personagens profundos, complexos.

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Malu Gaspar, jornalista que ficou conhecida na revista Piauí também pelo texto de perfil de Paulo Guedes, “O fiador”, escreveu n’O Globo uma comparação entre Bolsonaro e o PT e, mais precisamente, Bolsonaro e Dilma. Utilizando, diz ela, um termo extraído das redes sociais, alcunhou o momento atual de “bolsopetismo” ou, ainda, “dilmonarismo”. O tema era - surpresa! - a intervenção na Petrobrás.

À parte o fato de que Bolsonaro sentiu medo, sentiu que poderia sofrer consequências reais não com o modo como tem comandado o país e a pandemia, mas sim quando ousou mexer na estatal, encaminhando depois rapidamente projetos de privatização dos Correios e da Eletrobrás - enfim, à parte o que realmente deveria interessar, o foco tornou-se as semelhanças “estatistas” e “populistas” entre Dilma e Bolsonaro.

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Não entremos em detalhes, como da relevância do papel social da Petrobrás, o fato de que a jornalista deveria imaginar que a PPI, a política de preços internacionais, não é a única forma de se estabelecer uma companhia do porte e da importância de nossa empresa de energia, e que seria interessante ouvir a FUP ou dar algum espaço ao questionamento de sua hipótese. Voltamos, sim, à comparação esdrúxula: Dilma, que lutou pela democracia, sendo igualada ao ex-mau-militar que elogia a ditadura.

Imaginemos que Bolsonaro tivesse - vejam bem, tivesse - algum pendor, não pelo estatal propriamente dito, mas pelo nacional. Pelos interesses do povo, em sua maioria. Por seus interesses materiais, culturais, etc. Veríamos, sim, alguma semelhança no procedimento entre ele e Dilma Rousseff. Ainda assim, a comparação não deveria necessariamente ser feita. Não, ao menos, entre pessoas, mas sim entre ações: dizemos que Napoleão cometeu o mesmo erro de Hitler ao invadir a Rússia, mas não por isso passamos a dizer “Nazipoleão”. 

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Por que, quando Bolsonaro é privatista, neoliberal, quando se orienta confusamente pelos interesses do mercado (apenas porque é, como ele, um opressor), não é chamado de psdbolsonarista? Tucanaro? Ou por que não se o compara a FHC?

Aqui voltamos ao procedimento narrativo. FHC é, para esse jornalismo, um homem real (ainda que idealizado), íntegro, complexo, um personagem esférico e de verdade - portanto incomparável. Dilma, Lula e o PT são vistos como personagens planos, sem profundidade, sem complexidade. Por quê? Porque são o inimigo. Assim como vemos os inimigos de modo caricatural, simples, maus por natureza, como nos desenhos animados, assim também a mídia corporativa enxerga todo o Partido dos Trabalhadores. E, por que não, os trabalhadores, em geral (aliás, no texto aparece o povo, pejorativamente, de modo debochado, como “tios de ZAP” ignorantes, que não sabem aquilo que ela, a intelectual, se arvora saber).

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Quando reduzimos a complexidade política à caricatura, ao falso; quando nos negamos a enxergar o conteúdo e a vitalidade (ou a morbidez) daquilo que analisamos, chegamos apenas às linhas superficiais, formais, dos atores políticos. Assim, Dilma é “estatista”, “intervencionista”, e Bolsonaro também o é. São iguais, portanto.

Quanto a nós, progressistas, que por vezes caímos no argumento raso de que Bolsonaro e Dória são iguais (Bolsodória, aliás, não nos ajudou em nada), devemos nos deter: ambos são neoliberais; conhecemos o que é o governo trágico e de violência dilatada do PSDB, violência econômica e política a longo prazo, vendendo o país, arrochando a vida dos pobres, e violência policial ostensiva. Viemos a conhecer metade de um governo protofascista, também neoliberal, mas, em suma, diferente. Podemos inclusive especular se um surgiria do outro. Pensamos sim no que seria pior, o atual chefe do executivo ou o governador, mas sabemos que, para nós, são terríveis cada um a seu modo. Assim, inopinadamente, lhes damos o crédito de não igualá-los.

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Porém, ainda que Bolsonaro seja plano, fraco de ideias, sua morbidez é algo tão assombroso que sequer somos capazes de explicar. Como se tivéssemos que passar por Temer, um caso caricatural do macabro, para chegarmos enfim ao verdadeiramente tétrico, ao absurdo não enquanto aleatório, mas enquanto terrível. Bolsonaro, por vezes, nos parece plano, como um vilão de novela. Porém, quando o olhamos mais detidamente, vemos algo que não é plano, tampouco esférico: um abismo. “Eu não sou coveiro”, parece dizer - “Eu sou a cova”.

Enfim, não se trata de pensarmos no atual presidente como estatista ou nacionalista, o que certamente não é o caso. Não se trata de tentar ver semelhanças entre Dilma e quem quer que seja, principalmente alguém que lhe seria, em uma narrativa, na pior das hipóteses, um nêmesis, seu absoluto oposto. Trata-se de zelar pela verdade. Porque essas comparações são dolorosas, denotam o jogo sujo de certo setor da imprensa a que ainda relegávamos algum respeito.

É como se víssemos um jornalista entrando em uma sala de tortura e, quando já quase respirávamos aliviados, percebêssemos que não viera ali para estabelecer limites, para denunciar ou horrorizar-se com o que vê - mas para dizer, como em um mau filme do Batman extraído de um pesadelo, que torturado e torturador são iguais. Essa é a dor. Quando, sabemos, a igualdade deveria existir para o alívio, para a suavização, para nos tornar melhores. Vê-la ser cinicamente pervertida é uma dor - uma dor particularmente difícil de sentir e de explicar.

Sejamos claros: faça o que fizer, governe como governar, mudando inclusive de caráter, Bolsonaro nunca, jamais, será sequer comparável a Dilma ou a Lula. Pensar que são iguais não muda a realidade concreta de que não o são, de modo nenhum; pensar assim não torna Lula e Dilma rasos, mas sim o pensamento que por um instante o conjecturou.

Somente esse desprezo, que a jornalista certamente não sente sozinha, é capaz de ver o outro com tanta mesquinhez, com tão pouco horizonte que lhe veta ver o óbvio. No fundo, diz: Bolsonaro e Dilma são os inimigos - logo, são iguais. Basta que ambos levem um dedo à sobrancelha - uma porque trabalhou, outro como gesto de desprezo - para que nosso ódio incontido produza a igualdade. Pois é terrível, mas há sim uma igualdade produzida pelo ódio. As outras, as verdadeiras igualdades, estão sendo uma a uma abandonadas.

Nas palavras esconde-se tudo. Infelizmente. Inclusive o preconceito.

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