CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Flávio Ricardo Vassoler avatar

Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

39 artigos

blog

Do que foi que ele se lembrou?

Como que içado do transe de sua melancolia, o senhor me espreita com bonomia, curva levemente a cabeça e grunhe um bom dia retumbante como um eco...

(Foto: Luanna Falcão)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Todas as manhãs, quando saio do apartamento onde estou morando no bairro de São Lázaro, em Braga, cidade situada ao norte de Portugal, deparo com um senhor sentado em frente a um boteco. 

Sob uma boina quadriculada e tipicamente lusitana, o senhor tem o rosto flácido e vincado. Entre sobrancelhas grossas e desgrenhadas e olheiras fundas como pequenos charcos, seus olhinhos estreitos mais parecem frestas. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Invariavelmente, ele segura um cigarro com os dedos curvados pelo reumatismo e não o traga, como se já estivesse se despedindo com o aceno malemolente da fumaça e quisesse se confundir com as cinzas.

Logo passo a lhe dar bom dia. (Ainda que fugaz, a proximidade rotineira insinua a cordialidade tácita.)

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Como que içado do transe de sua melancolia, o senhor me espreita com bonomia, curva levemente a cabeça e grunhe um bom dia retumbante como um eco. 

É assim que o sr. Manuel (o dono do boteco é quem me revela seu nome) se torna o marco das minhas manhãs, tão certeiro como o badalar dos sinos da catedral medieval de Braga. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Sempre por intermédio do dono do boteco (o sr. Miguel), fico sabendo que o sr. Manuel é viúvo e chegou a lutar pela pátria na guerra de independência de Angola. 

– Será por isso que o sr. Manuel é tão taciturno e ensimesmado? 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O sr. Miguel cofia o bigode grisalho, vagarosamente, antes de redarguir:

– Que atire a primeira pedra quem, a essa altura da vida, não tiver o que silenciar... 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Na manhã seguinte (e pela primeira vez em meses), o sr. Manuel, inamovível de seu posto de sentinela do boteco, não está lá. 

Tão perplexo e aflito quanto eu, o sr. Miguel encolhe os ombros sem saber me informar o paradeiro de seu compadre de silêncio. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

– Mas onde é que ele mora, sr. Miguel?

O sr. Miguel coça o cocuruto. (Será que ele consegue imaginar o sr. Manuel morando em algum lugar que não em seu posto de sentinela do boteco?). Súbito, o sr. Miguel tem um estalo e aponta para uma casinha a uns 30 metros (se tanto) do boteco. 

Sem receio de deixar o boteco desguarnecido, o sr. Miguel caminha comigo em busca do sr. Manuel. 

Como a casinha não tem campainha, começo a bater palmas (técnica da minha infância), enquanto o sr. Miguel só faz chamá-lo:

– Ó Manuel, estás aí, pá?

Nenhum pio. 

Temendo não sei o quê (sinto que não queríamos dar nome ao que temíamos), o sr. Miguel e eu abrimos o portãozinho enferrujado, cruzamos o jardim descuidado em três passos e passamos a bater à porta.

– Ó Manuel, estás aí, pá?

Com minhas batidas mais insistentes, a porta simplesmente cede e se abre.

Na sala escura do sr. Manuel (será que essas cortinas já foram abertas sequer uma vez?), um cheiro de tempo coagulado me invade (mofo e saudade). 

Ao lado de uma velha vitrola com a agulha suspensa (estancada...) rente ao vinil, vemos uma poltrona acaju com os delineamentos do sr. Manuel (sua ausência côncava). 

O sr. Miguel vai até a poltrona e toca as reentrâncias em busca de calor humano. 

Antes de chegarmos ao que parece ser o quarto do sr. Manuel, vemos, sobre uma cômoda de mogno, uma foto antiga de uma jovem (sua finada esposa?) e um retrato a óleo de um rapaz fardado (o filho que não visita o pai?).

Acendemos a luz do quarto: o sr. Manuel está deitado na cama como um pássaro ferido. 

– Ó Manuel, estás aí, pá! Te esqueceste de nós esta manhã? 

Nenhum pio.

Ao nos aproximarmos, o sr. Miguel e eu estacamos com o vislumbre do rosto do sr. Manuel: pálido, ainda mais ausente, olhos esbugalhados de coruja. 

Quando o sr. Miguel o sacode pelos ombros, o corpo do sr. Manuel se move, rígido, numa só direção, como um tijolo compacto. 

Comiserado, o sr. Miguel tira a boina e a segura junto ao peito. 

– Pobre Manuel... 

Antes de lhe fechar os olhos, o sr. Miguel indaga: 

– O que será que ele viu por último que o deixou tão espantado? 

(Ouço em mim a réplica: do que foi que ele se lembrou?...)

Ilustrado pela artista visual cearense Luanna Falcão – Siga seu Instagram: https://www.instagram.com/luanna.artworks/ 

Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019) e Metamorfoses, os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). É colunista do site Brasil 247, para o qual escreve ficções, semanalmente, sobre sua experiência nômade no continente europeu. Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO