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Gustavo Simi

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Entre nós e tudo isso, sempre, muita violência

O problema é a tentativa arbitrária de identificar a violência em um determinado segmento ou contexto social, mas nunca reconhecê-la como parte constituinte da própria sociedade. A violência não pode ser um problema dos outros, daquele “tipo de gente”

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No primeiro capítulo do livro “Justiça – pensando alto sobre violência, crime e castigo”, Luiz Eduardo Soares demonstra como a interpretação de uma história depende do ângulo pelo qual se observa a mesma. Como exemplo, o autor narra uma conversa que teve com um taxista, revoltado com o fato de um de seus melhores amigos – motorista de ônibus – ter sido assassinado por um menor de idade durante um assalto:

- Aí vem esse pessoal dos direitos humanos pra proteger esse moleque! E os filhos do meu amigo, que vão crescer sem pai? Quem se preocupa com eles? – dizia, indignado, o homem.

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Luiz então o convidou a pensar o caso de uma outra maneira. Compartilhou com ele a dor, a indignação e o sofrimento com toda aquela situação. Disse que estava preocupado com o futuro daquelas crianças, depois que perderam o pai numa circunstância tão violenta e desastrosa. Mostrou desconforto com o futuro dos filhos da vítima, o que era a principal justificativa do taxista para cobrar uma punição severa ao assassino “de menor”.

- Imagina se um desses jovens, sem pai, pobre, sem esperanças, revoltado com a vida, resolve comprar um revólver e começar a assaltar. Um dia, num desses assaltos, ele acaba reagindo de forma descontrolada, e atira em um homem, o matando. Seria justo condená-lo a uma pena proporcionalmente tão grave ao estrago que ele causou? Devemos continuar alimentando esse ciclo de ódio, vingança, violência? – indagou o sociólogo.

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O taxista respondeu que nunca tinha pensado sob essa ótica, e concordou que a moral de uma história depende sempre do ponto de vista de quem narra. Na madrugada do último dia 29, durante uma operação da Polícia Militar para recuperar um veículo roubado na favela Novo México, em São Gonçalo, dois jovens motociclistas foram baleados e morreram. A comunidade se levantou em revolta, acusando os policiais de assassinarem inocentes.

Na maioria dos meios de informação, no dia seguinte, a principal notícia sobre o caso eram os ônibus incendiados por traficantes, os ataques às sedes e tropas da PM e o levante de terrorismo do “crime organizado”. Na globo.com, por exemplo, apenas uma linha informa que “Na operação, dois suspeitos em uma moto foram mortos a tiros“:“Criminosos ateiam fogo e interditam RJ-104, diz Polícia”.

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No programa “Cidade Alerta Rio”, na Rede Record, o apresentador gritou: “Isso não tem a menor legitimidade, não pode ter o nosso apoio. São bandidos, terroristas, vagabundos! Não representam a maioria da população, a família brasileira, que precisa desses ônibus pra trabalhar. A gente entende a dor de uma mãe que perde um filho por bala perdida, mas isso aí não tem nada a ver com esse sentimento. Isso é crime!”.

A tentativa de sensibilização do espectador mais revoltado com a situação social do país foi curiosa: “Depois os empresários de ônibus ainda justificam o aumento do preço das passagens por causa desse tipo de barbaridade, porque precisam comprar ônibus novos”. Entre inúmeras opiniões convictas e certezas absolutas, não se escutou a voz de um único morador daquela comunidade, a principal vítima de tudo: da polícia, e dos traficantes.

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Àquela altura, pouco importava investigar a verdade: a conclusão da história, os ensinamentos e as consequências que ela deveria despertar, já estavam previamente definidos. A questão ali, naquele caso, era condenar a violência dos traficantes que incendiavam os ônibus e desvincular completamente esse fato de uma possível reação da comunidade, dos indivíduos “de bem”, ao assassinato de dois inocentes pela polícia militar.

Nesse caso, não existe sequer necessidade de comprovar, a partir de fatos, uma opinião que se torna, ela própria, um fato: ou seja, partindo-se do pressuposto que aquela revolta não era legítima e nem compartilhada pela maioria das pessoas que vivem na favela Nova Holanda, os jornalistas sequer se dão ao trabalho de escutar os moradores, entender os detalhes de todo o processo e justificar a posição, exposta de forma tão veemente.

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Essa situação já acontece há muito tempo, mas um episódio recente se tornou especialmente marcante por conta do contexto em que ocorreu: junho de 2013. O caso foi a cobertura da Globo News a um protesto que acontecia na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A tela foi dividida em duas: de um lado, os “manifestantes pacíficos, com cartazes, cobrando o fim do aumento das passagens”; do outro, “os bandidos, vândalos sem causa que só fazem baderna”.

A apresentadora não teve qualquer constrangimento em sugerir ao telespectador que notasse a diferença “no tipo de gente” que estava protestando em cada situação, se utilizando exatamente desses termos. No primeiro caso, uma imensa maioria de moradores da Barra da Tijuca, de classe média, brancos; no outro, os habitantes da Cidade de Deus, quase todos pobres, negros: “são coisas completamente diferentes”, insistia ela.

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Não se trata de discutir a validade do método, pois nenhum processo de transformação que se pretenda duradouro e efetivo deve se utilizar da violência; mas também é impossível imaginar que qualquer início de uma transformação que se pretenda verdadeira e profunda possa renunciar dela como um recurso. A violência sempre esteve e continua presente nas sociedades, o que evidentemente é algo a se lutar diariamente contra.

Mas seria uma ilusão imaginar que num momento de crise como esses – ou, dependendo do ângulo do qual se narra a história, de abertura para uma possibilidade de mudança – tudo pudesse transcorrer de forma pacífica. Isso não significa legitimar a violência ou reconhecê-la como insuperável; mas quando os protestos da Zona Oeste são narrados como histórias “completamente diferentes”, envolvendo inclusive dois “tipos de gente”, é isso o que acontece.

Os moradores da Cidade de Deus, que supostamente não eram “manifestantes“, mas “vândalos e baderneiros sem causa“, estavam depredando uma concessionária de automóveis na Avenida das Américas, ao mesmo tempo em que os residentes dos condomínios da Barra da Tijuca cobravam a diminuição das tarifas para o transporte público. Negar a relação entre esses fenômenos é privilegiar uma moral, ao invés da história.

No canto esquerdo da tela, o orgulho (ainda que imposto pelo contexto, e até mesmo contido) com a população brasileira, que tomava as ruas para demonstrar que não era omissa, alienada e nem ignorante dos problemas políticos e sociais pelos quais o país estava passando. No lado direito, a revolta (ainda que provocada pelo temor e o desconhecimento daquele “tipo de gente“) com a violência e a barbaridade dos que “não são manifestantes”.

Parece duro para a sociedade brasileira, algumas vezes, assumir que a violência é uma forma de manifestação. O mais controverso nesse caso é que, na verdade, a violência provavelmente é a forma de manifestação mais recorrente na sociedade brasileira. Em alguma medida, é positivo perceber que ela não a tenha aceitado e incorporado como legítima e insuperável. É muito importante a capacidade de criticar a violência.

O problema é a tentativa arbitrária de identifica-la em um determinado aspecto, segmento ou contexto social, mas nunca reconhecê-la como parte constituinte da própria sociedade. A violência não pode ser um problema dos outros, daquele “tipo de gente” acostumada a enxerga-la como um modo de expressão; mesmo porque esse costume não foi construído sem a participação fundamental de toda a sociedade, consequentemente corresponsável por ele.

Quando milhares de cidadãos saem às ruas porque não suportam mais um modelo de transporte público tão caro e ineficiente, ao mesmo tempo em que aqueles que nunca tiveram nenhuma outra alternativa e sempre foram os que mais sofreram com a qualidade e o preço desses serviços estão destruindo lojas de automóveis, tratam-se de fenômenos similares e coincidentes, não à toa acontecerem em espaços geográfico e temporal tão próximos.

Mas essa contradição tão extrema não é justamente a marca da sociedade brasileira, expressa de forma explícita nas largas avenidas da Zona Oeste de sua antiga capital? As diferenças tão próximas no território, entre asfalto e favela, entre o luxo e a marginalidade, entre a metrópole e o gueto. Mas também tão próximas no tempo, entre a democracia e a ditadura, entre a liberdade e a escravidão, entre direitos humanos, ordem e progresso.

E entre nós e tudo isso, sempre, muita violência.

 

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