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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

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Eros

Do jeito que estava não podia continuar. Não havendo compradores para a única mercadoria que lhes sobrava arrumaram uma maneira de ganhar a vida, uma nova

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Têm vidas que, vivíveis, não merecem ser vividas mas não se separam. A questão patrimonial é apenas uma das razões pelas quais seguem juntos e vigorosamente obstinados em arruinar a relação que um dia possibilitou-lhes moderada felicidade. Antes era diferente, docinho pra cá, benzinho para lá. A coisa começou a desandar há uns três ou quatro anos quando ambos ficaram sem trabalho. 

Torraram a poupança, livraram-se do carro, mudaram para um apartamento menor, condomínio mais barato, venderam os móveis que fizeram sobrar. O amor que substituíra a tórrida paixão inicial metamorfoseou-se paulatinamente em modorrenta cumplicidade assexuada imposta pelas circunstâncias da escassez material. A convivência conjugal decorria da miserável necessidade de ter com quem dividir as despesas mais corriqueiras na cotidianidade de dois desempregados. 

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Do jeito que estava não podia continuar. Não havendo compradores para a única mercadoria que lhes sobrava arrumaram uma maneira de ganhar a vida, uma nova.

Não foi fácil começar. Não tinham intimidade com a coisa, malemal por foto. Curiosamente, contudo, esse distanciamento cognitivo terminou por se constituir em diferencial, pelo inusitado, para a concepção do negócio a que, vorazes, se entregaram. 

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Antes de se dedicar à decoração de vitrines, profissão praticamente extinta por falta de consumidores, havia se formado em administração de empresas. O savoafer foi sendo concebido na prática, tentativa e erro, com a contribuição da experiência teórica do outro, adquirida no curso incompleto de publicidade, embora até então também nunca tivesse exercido esta profissão. Havia sido personalistailist de alguns ascendentes sociais. A maioria destes, todavia, hoje em acelerado processo de decomposição em seus padrões, achando chique ser brega, inculto e grosseiro. Sua atividade, dar algum lustro à pequena-burguesia ignorante que melhorava de vida, perdeu a razão de existir desde o Golpe.

As pessoas querem acreditar em algo, observaram. Em qualquer coisa, até que em chinês a palavra crise significa também oportunidade. Sem televisão a cabo, começaram a assistir aqueles tolos programas evangélicos, com curas e milagres. Neles descobriram a fé como meio de vida. Em uma conversa na fila da lotérica escutaram que o sincretismo caracterizaria o futuro da humanidade. Juntaram os dois conceitos.

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Era isso. Precisavam inventar algo novo, criar uma demanda que se adequasse às necessidades concretas de quem precisa da fé, empoderando essas pessoas ávidas por novidades que transitam entre ciências ocultas e a pós-modernidade. A pesquisa durou algumas semanas. Fizeram um plano de negócios e outro de márquetim. Identificado o público-alvo, mulheres, misturam conceitos de distintas matrizes culturais com pitadas de ancestralidade para inventar um ritual.

Depois do leão morto é fácil colocar a pé na cabeça do bicho e tirar uma fotografia, mas até que o negócio começasse a produzir resultados foram meses de dedicação e muito trabalho. O sucesso reside nos detalhes, no enredo coerente, nos gestuais, na fraseologia utilizada, no treinamento de pessoal, na estética adequada. Agora estavam bem de vida. E prosperando na mesma proporção dos desencontros e das insatisfações que acumulavam no plano afetivo.

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Dezenas de facilitadoras foram treinadas. Cada uma com sua carteira de clientes. Empresárias de si mesmas destinavam a maior parte do que arrecadavam aos idealizadores da coisa toda. Parece fácil, mas não é. Há toda uma tecnologia embarcada, produção de conteúdo, divulgação, ferramental de informática, fornecimento de insumos, logística, mecanismos de controle de qualidade e, acima de tudo, concepção de técnicas de envolvimento. Convencer mulheres de distintas classes sociais e variadas faixas etárias a defumar seus baixeiros é mais complexo do que aparenta ser. 

Atualmente os negócios estão em expansão. Cogitam mesmo abrir franquias em outros estados. Em pouco tempo contabilizaram quase trinta mil clientes que, em sóbrios rituais xamânicos, se acocoraram cobertas por ponchos delicadamente bordados com iconografias de diversas tradições, síntese sincrética do Espírito Universal, nuas da cintura para baixo, sobre um kit de ervas sagradas em brasa para defumar a genitália, yoni em sânscrito, com objetivos diversos, desde os mais dramáticos, como o tratamento de câncer, até os mais recreativos, para facilitar o orgasmo. O pulo-do-gato resultou da opção mercadológica pelo ganho de escala e preço baixo, trezentos reais cada sessão mensal, mínimo de três, remunerando as facilitadoras com um terço do valor em cada oportunidade, e a customização do serviço prestado, na casa das clientes, no horário escolhido, com dicas personalizadas para cada tipo de pessoa. Dependendo das ervas utilizadas o tratamento serviria tanto para estimular a fertilidade como para evitar gravidezes indesejadas. Deram entrada em um apartamento novo. Também financiaram carros para cada um, mesma cor e modelo, em nome da pessoa jurídica constituída, e adotaram uma cachorrinha velha, de humor instável, na tentativa de reinventar uma relação que se fragilizava. Filhos salvam casamentos, todos sabem.

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Com a recuperação econômica do casal, contudo, os problemas aumentaram. No tempo das vacas magras um se apoiava no outro, a necessidade tornava indispensável a solidariedade, por questão de sobrevivência. Com a prosperidade empresarial, ao invés de diminuir, a intolerância entre ambos, a irritação com as atitudes e pequenos trejeitos, antes minimizadas, passaram a ser, de lado a lado, experimentadas como insuportáveis e, simultaneamente, prazerosas, quase eróticas, simbióticas, parasitando a relação que só remanescia como patologia.

O ponto de não-retorno ocorreu durante as eleições. Um execrava o capitão, o outro vestia-se de verde e amarelo. Com o início do novo governo, descambou de vez. Era um tal de governador de estado paraíba e não existe fome no Brasil de um lado, glorificação da ignorância e terraplanismo de outro. Um defendia a liberdade de imprensa e se horrorizava com o conteúdo das revelações de relações institucionais obscenas, o outro defendia os procuradores e o ex-juiz sustentando a tese das provas ilegais e, como vingança, se negava a chamar a cadela bipolar pelo nome de Raquel Cármen, apelido carinhoso sapecado pelo conje. Dessas banalidades passaram a divergir também na condução dos negócios. Um queria diversificar, lançar-se a novos desafios, importar umas pomadinhas que, reenvasadas, agregariam valor e ampliariam os lucros. O outro insistia que o modelo fordista, industrial, baseado em produtos tendia ao desaparecimento, defendia aumentar o portifólio de serviços, com ganhos marginais, sem novos investimentos. Faziam-se mutuamente intragáveis, sem qualquer resquício de predisposição ao entendimento. 

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Derradeira tentativa, tão irracional quanto as esperanças e as expectativas de sua distinta clientela, casaram-se formalmente no final do governo anterior, vaiquené, e foi a pior viagem. A contratualização da união estável e o conforto econômico terminaram por fazer desaparecer, esfumado, o que restava de afeto e de estímulo à sedução. Sentiam-se reciprocamente seguros e condenados a uma convivência dessensualizada, artificial, envenenando-se por desejarem um a morte do outro, como a solução para a covardia própria. Não podiam se separar, o negócio sofreria. Nenhum tinha condições de comprar a parte do sócio, a quem atribuía a infelicidade. Na penúria não se separaram por precisarem um do outro para rachar as despesas; na fartura, não podiam se separar pelo motivo oposto. Tanatos. Pulsão de morte. Um aspirando a do outro, com episódicos momentos de plena consciência disso, como desejada solução definitiva em uma relação fracassada, como se fossem heterossexuais.

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