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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Esboço para uma epopeia da paz

O ódio pode ser meu. O ódio pode ser seu. A concórdia que abraça, no entanto, torna porosas e embaralha as nossas fronteiras farpadas: na terra de ninguém do nosso toque em comunhão, o calor do afago não é meu e não é teu (mas me afeta e te afeta). O acalento germina uma nova semente: nós.

(Foto: Luanna Falcão)
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I. A árvore

A mão que arma o soco pressupõe a mão que atira a pedra.

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A mão que atira a pedra prenuncia o estilingue, irmão mais velho do arco e flecha. 

O arco e flecha, sobretudo quando desfere setas embebidas em estricnina, é a antecâmara do revólver.

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O revólver de tiro e morte sequenciais - um, dois três; uma, duas, três - já anseia pela rajada de morte múltipla da metralhadora.

II. A floresta

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A lança é a infância da catapulta.

A catapulta é a mãe do canhão.

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O canhão, quando se aposenta, indica o míssil para o trabalho. 

O míssil, tubarão dos ares, violador de nuvens, tem medo de si mesmo quando seu nariz de palhaço é uma ogiva de urânio.

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III. A árvore 

A mão que arma o soco vê o rosto ensanguentado da vítima e ainda consegue entreouvir a súplica de medo e desespero. 

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A mão que atira a pedra já começa a se eximir: ela toca a mediação da morte, mas não a morte propriamente dita. 

O arco e flecha, primo pobre do revólver, não conseguiu vender os direitos autorais da mira telescópica (e da distância cúmplice e alienada do fuzil), mas a mira infalível deveria lhe pagar royalties. 

A metralhadora, sádica como ela só, volta ao campo de batalha para redimir o guerreiro cercado, que, sem 300 socos por minuto, não tem como derrotar as tropas inimigas que o encurralam.  

IV. A floresta

O canhão pisa nas costas da catapulta e rouba o urro do trovão. Quanto às vítimas pequeninas como formigas do outro lado da costa, o canhão da colonização sentencia: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos”.

O míssil não entende como o canhão, aniquilador de meras casas, e não de sucessivos bairros e cidades, fica resignado à ambição réptil e rasteira da bola de boliche ou do voo rasante das galinhas. 

V. A semente

Enquanto o bélico irradia a metástase de sua covardia e abstrai suas vítimas como inequívocos e inescapáveis alvos via satélite, tudo aquilo que é belo e bondoso reparte o pão, a um palmo de distância, antes mesmo de oferecê-lo. 

O anjo interpretado por Bruno Ganz, no filme Asas do desejo, de Wim Wenders, se pergunta com compaixão e perplexidade: “Por que Homero, na Ilíada e na Odisseia, compôs epopeias da guerra, e não da paz?”. 

Ora, por que somos tão pródigos em fazer a ode às armas e aos barões assinalados, mas temos poucas palavras para as pessoas, que, sem pedras nos bolsos, oferecem o peito como porto para os alagados pela tristeza e amargura?

Eu me sinto comovido quando alguém desconfia da própria dúvida (e do próprio medo) e abre um flanco mole e frágil como gema de ovo: ali ainda há vontade de amar. 

Eu me sinto comovido quando alguém ousa levantar o pescoço como um periscópio por sobre o mar gélido de nossos afetos e tenta cicatrizar o ceticismo e o cinismo do filósofo Diógenes de Sínope, que, mesmo ao meio-dia, empunhava sua lanterna em busca de um amigo. 

- Eu estou aqui, Diógenes. Vamos tomar uma cerveja, velho?  

Eu me sinto comovido quando alguém tenta desarmar o inimigo com uma arapuca de perdão e esquecimento. Quando as tropas inimigas se dão conta de que não sabem viver sem uma guerra diante de si, o mensageiro da paz pode lhes dizer, com suma alegria, apontando para o campo de batalha repleto de tanques convertidos em casas: 

- A capela já não precisa ser a testemunha e a sentinela do túmulo. A saudade já não precisa se alimentar de si mesma como um estômago faminto. Que tal tatear rumo ao amor sem tormento e inquietude? Que tal dançar valsa com as próprias sombras? Que tal libertar o palhaço de sua condenação ao sorriso perpétuo para que possamos sorrir não apenas nos entreatos da vida? 

A bondade é frágil em face do ódio. O ódio tem sempre o dedo no gatilho, enquanto a bondade sente compaixão por quem empunha a vida como um escudo. 

O ódio pode ser meu. O ódio pode ser seu. A concórdia que abraça, no entanto, torna porosas e embaralha as nossas fronteiras farpadas: na terra de ninguém do nosso toque em comunhão, o calor do afago não é meu e não é teu (mas me afeta e te afeta). O acalento germina uma nova semente: nós.

*Ilustração de Luanna Falcão. Sigam seu Instagram: https://www.instagram.com/luanna.artworks/

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