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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

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Estopim social não depende só de fatos, mas de pessoas

O jurista Wilson Ramos Filho afirma que o dilema no Brasil de Bolsonaro é a chegada ou não do 'estopim' que desencadeie a retomada da soberania democratica pelo povo. Ele diz: "o estopim, como há cem anos na Europa, depende da agudização do mal-estar, da compreensão da injustiça da opressão econômica, cultural e social e da percepção de que aquele senso-comum anterior pode e deve ser superado"

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Todas as recentes revoltas populares começaram quando algo fez com que a realidade vivida se tornasse insuportável para distintos grupos sociais. 

Em tom de brincadeira, com fundo de verdade, muitos têm festejado a alta do dólar (que prejudica as pretensões turísticas da classe média e inúmeras cadeias produtivas que dependem de importações), têm rido da alta nos combustíveis, do preço da carne, do desastre na política econômica do Coiso e do Tchutchuca. Imaginam que logo algo fará a população perceber o tamanho da encrenca causada pelo Golpe e suas consequências, entre as quais o antipetismo e a eleição do tenente. 

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Os mais otimistas vaticinam que a panela de pressão estaria muito próxima da explosão. De fato, as reformas, trabalhista e previdenciária, produziram transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. De fato com salários menores o consumo despencou, a clientela desapareceu, diversos negócios estão fechando. De fato nunca foi tão grande o número de pessoas morando nas ruas, a violência policial contra pobres jamais foi tão cruel ou tão profundo o desalento da juventude quanto à possibilidade de um futuro melhor. De fato as margens de lucro dos pequenos e médios empresários encolheram. A capacidade de consumo dos funcionários públicos está incomodando muitos que apoiaram o fora-petê. De fato os caminhoneiros estão sem fretes, os prestadores de serviços estão “de varde”, a poupança está sendo consumida, a economia encontra-se estagnada, as bolsas vêm derretendo, as rendas financeiras estão em níveis ínfimos desde a baixa na Selic. De fato a pobreza aumentou, a classe média está desaparecendo, o mal-estar social se aprofundou. 

O que mais falta para termos uma revolta popular como as vislumbradas na Argentina, no Equador, no Chile, na Bolívia e na Colômbia? 

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Ocorre que não bastam as condições objetivas. São necessárias condições subjetivas para a rebelião, embora sem aquelas estas não se desenvolvam. E algo mais. 

Uma maneira bolsonara de existir foi construída histórica e socialmente. Difícil descrevê-la em poucos parágrafos. O crescimento do exoterismo (evangélico, afro, indiano, católico ou espírita, pouco importa), constitui causa e consequência da maneira de existir que deprecia estudo e o conhecimento, que cultua a irracionalidade, que critica o “politicamente correto”, que aceita teorias da conspiração. Entretanto, a fé no improvável, isolada, não basta para explicar a apatia popular apesar das agruras das condições objetivas. 

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Certamente haverá outras razões para que experimentemos placidamente essa catástrofe humana, social, ambiental, esta maneira bolsonara, neoliberal, de existir, com naturalidade. O pobre-de-direita e o barnabé-miserê não constituem abstrações, estão em todas as partes desse território abençoado por deus e bonito por natureza, repetindo o que lhes é ensinado nas redes sociais, nos templos e terreiros, nas distintas tribos urbanas que fragmentam a sociedade, constituindo uma racionalidade irracional, um senso-comum, uma visão de mundo deturpada que valoriza o punitivismo, a exclusão dos diferentes, a estigmatização do diverso, dos outros, e embala a idealização de líderes políticos ou religiosos. 

A sociedade brasileira se tornou fascista? A resposta depende do que se entenda por fascismo. Discussão interminável e infrutífera. O certo, todavia, é que a sociedade aderiu a essa maneira de existir, por várias razões. E não há sinais suficientes para imaginar que as condições objetivas gerais e as subjetivas particulares, grupais ou individuais, estejam em confluência. 

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Caso as passagens de ônibus ou metrô chegassem a R$ 6,00, caso o dólar atingisse R$ 6,00, caso cada litro combustíveis custasse R$ 6,00, sem dúvida as condições objetivas de deterioração nas vidas concretas de amplos setores sociais seriam ainda mais propícias à revolta e à rebelião social. Caso isso ocorresse, o que não é difícil de imaginar, talvez as condições subjetivas, as percepções das pessoas, se tornassem mais favoráveis às insurreições populares. Mas ainda assim, dificilmente veríamos o povo brasileiro reagindo como os argentinos, os equatorianos, os chilenos, os bolivianos ou os colombianos. E não pela nossa “índole dócil ou pacata”, um dos mitos da brasilidade. Faltaria o estopim. 

O que consterna muitos analistas é que mesmo com tudo custando mais caro, com o quilo da carne a R$ 60,00, com salários comprimidos, com as margens de lucro recuando, mesmo estando presentes condições objetivas e subjetivas, ainda assim não teríamos uma reação similar à que assistimos em outros países latino-americanos. Bem ao contrário, milhares ainda aplaudem a LavaJato, apoiam os desmandos do Moro e da magistratura, do ministério público e das polícias, repetem aparvalhadas teorias que identificam o The Beatles, Di Caprio e tantos outros como “agentes do comunismo internacional”, em algo que no futuro será identificado como imbecilidade epidêmica. Faltaria apenas o estopim, insistem os críticos sociais. 

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Esses analistas esquecem, todavia, que as vítimas só se levantam contra burrice, a insensibilidade, a injustiça e a iniquidade quando, para além das condições objetivas e subjetivas, haja a percepção de que aquelas condições de vida em sociedade que lhes são impostas se apresentam como insuportáveis, intoleráveis, inaceitáveis. 

Enquanto a maneira bolsonara de existir em sociedade não for compreendida como inadmissível, intragável, veremos aqui e ali mobilizações setoriais, grupais, tribais, no sentido emprestado a este termo pela antropologia urbana, porém dificilmente contemplaremos significativos movimentos destituintes. 

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O estopim, como há cem anos na Europa, depende da agudização do mal-estar, da compreensão da injustiça da opressão econômica, cultural e social e da percepção de que aquele senso-comum anterior pode e deve ser superado. 

Construir-se, na prática, como artífice deste faiscante estopim constitui o desafio da esquerda democrática não eleitoralista. O saco de maldades daquela gente insensível parece não ter fundo, todos os dias despertamos com injuriosas provocações. Aumentos de tributos para quem trabalha, retirada de direitos, destruições diversas nas já insuficientes políticas públicas. Desesperados, embora bem intencionados, setores socialdemocratas, inclusive no sindicalismo, nos acenam com propostas de conciliação com inexistentes “setores moderados do empresariado”, com eleitoralmente irrelevantes “partidos de centro”, com “negociações parlamentares” para abrandar o impacto da guilhotina em desamparados pescoços, com expectativas de recomposição institucional em um novo pacto para reconstrução sob os escombros do Golpe de 2016. 

O cinema com Bacurau, Coringa, Odisseia dos Tontos e Parasitas parece perceber algo que escapa ao pacifismo namastê, à militância exclusiva nas redes sociais e aos críticos acadêmicos sem prática social transformadora. Para estes o cinema de Relatos Selvagens parece ser o limite, como diagnóstico, como sintoma de nossa enferma sociabilidade contemporânea. Para estes a Tese XI resplandece como excentricidade, remanescem à espera do estopim que, mecânica e espontaneamente, qual cogumelo na bosta, vermelho salpicado de prata, brotará da confluência das condições objetivas com as subjetivas, uma vez passada a chuva, olhos postos no calendário eleitoral. O charco não produz faísca, mas ainda é cedo para que tal constatação se imponha como imperativo ético, para que o que vivenciamos se nos pareça intolerável. 

Por WILSON RAMOS FILHO (Xixo), presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, em 01/12/2019

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