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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Eulália, a memória de presente

Eulália (Foto: Urariano Mota/Arquivo Pessoal)
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Eu jamais pensei em reencontrar o que parecia definitivamente perdido. 

Sempre olhei com estranheza a frase bíblica de que é melhor dar do que receber. Mas a maturidade, ou a segunda maturidade em que me encontro, me ensinou que devemos olhar com atenção na Bíblia o que não pode nem deve ser dogma. Ao nível da minha própria experiência, em mais de uma oportunidade, vi que ao fazer um bem terminamos por fazer um bem a nós mesmos. É uma recompensa que não está no céu, mas na terra. “Faz o que manda o teu coração”, essa é a melhor recompensa, em princípio. Mas há outras recompensas inesperadas. 

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Ao enterro da senhora Marta Spinelli de Lima, tia de um amigo de infância, eu fui para externar o respeito a uma pessoa simples, fazer o que me mandava o afeto somente. Mas não poderia imaginar que no cemitério eu  encontraria um dos maiores presentes da minha vida. Assim foi em 2011.      

De repente, quando vou saindo, uma senhora com uma cabecinha toda branca, veio até perto de mim e começou a falar de coisas que eu não entendia bem, mas que me pareciam ter sabor de pão com açúcar, no tempo da infância no beco. Ela me abraçou, eu retribuí o abraço, e veio dela um cheiro antigo de roupas queridas, ocultas em algum lugar sagrado de um guarda-roupa esquecido. Nesse abraço ela me falou que me conhecia há muito, muito tempo. Mas como? Eu não podia adivinhar de onde poderia conhecê-la,  e quanto mais ela falava, mais as palavras e seu mundo vinham para mim  numa fala longínqua, de significados primevos, de lá de uma curva oculta, mas que ainda existia, mas tão distante que, se eu conhecia aquelas  palavras, eu havia desaprendido a sua beleza. Ela falava um português guardado, escondido e quase perdido, mas que ainda assim era íntimo, de um outro escondido de mim mesmo.

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Então, abalado, eu fui sincero para aquela linda senhora, eu fui sincero como uma criança diante do abrigo de uma mulher que lhe tem amor, e por isso, por esse afeto, vexado, eu lhe perguntei:  

- Como é o seu nome?

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- Maria Eulália Pessoa Bezerra. Eulália mesmo. No beco onde a gente morou, só me chamavam de Euzinha. 

- Eulália? Euzinha? Desculpe, por favor, mas ainda não estou lembrando. 

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Então a senhora Eulália me explicou, quero dizer, ela deu início a um primeiro movimento para a luz da estrela distante, mas primeiro em uma  superfície, onde estava uma inscrição de hieróglifos que remetiam a  realidades além dos sinais escritos. Então, a bela senhora Eulália, Euzinha, me explicou didática a primavera, a primeva e primeira luz. Eulália estava de óculos escuros, num contraste bonito da sua cabeça inteira branca, mas era um branco que mais falava da infância que da velhice. Eulália me  conhecia desde os distantes primeiros anos no beco, ali por volta dos meus 6 anos de idade. 

No cemitério, e somente ali, à sombra das árvores frondosas do cemitério de Santo Amaro no Recife, em frente aos túmulos, Eulália me contou, contou mesmo, antes de contar, que me ensinara as primitivas noções de contar com os dedos. Assim, na infância, ela me falou em um tempo quase esquecido:

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- Quantos dedos você tem?

- Hem? Eu não sei - eu lhe respondera.

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- Vamos: um, dois, três, quatro, cinco. 

- Um, dois, três, quatro, cinco. Cinco!

- E nas duas mãos?

- Hem? Sei não.

- Vamos, continue: seis, sete, oito, nove, dez. 

- Seis, sete, oito, nove, dez. Dez!

Isso Eulália me lembrou no cemitério, depois de 55 anos! 

Então comecei a lembrá-la. Quero dizer, eu não lembrava da sua figura de mocinha de 18 anos, pois agora ela estava diante de mim aos 74 anos. Mas eu lembrava perfeitamente do espanto que ela me dera ao me ensinar a contar na forma primitiva do contar.   E por isso, mais que voltar à primeira lição básica, eu desejei mais: eu queria saber da minha mãe, que falecera em dezembro de 1958. Euzinha a conhecera? 

Ah! Uma sombra de nuvem correu sobre o meu rosto, lá na idade do cemitério, porque vi a sombra de uma nuvem na tarde passando também pelo rosto de Eulália, a senhora de cabeça toda branca que me abraçava, quando eu próprio estava como se usasse uma peruca de cabelos grisalhos. Ela me disse: 

-  Criança. Você tem o mesmo rosto de criança. 

Mas eu queria saber a lembrança que ela possuía da minha mãe. E a senhora Eulália não me desencantou:  

- Ela era uma mulher bonita, de rostinho redondo, com os olhinhos negros, muito vivos. Para mim, ela era uma boneca índia. 

- Boneca índia? 

- Sim. Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos, negrinhos. 

Eu não chorei no cemitério, eu sorri, que era maneira de me comover, de me encantar sem lágrimas com a revelação daquela memória. Eulália me acariciou o rosto e cravou, como as pessoas do povo cravam, porque delas é a palavra definitiva:

- Você é a mesma criança.  

Eu não acredito em Deus. Mas acredito muito na coincidência humana cujo nome é Eulália Pessoa Bezerra. Um beijo pra você, Euzinha.  

Publicado originalmente em: https://vermelho.org.br/coluna/eulalia-a-memoria-presente/ 

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