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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Eutanásia: o caso Andreas Kisser

Gostem ou não, Sepultura foi mais conhecida do que João Gilberto

Andreas Kisser em primórdios dos anos 80, no ABC paulista (Foto: Julinho Cassettari)
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Por Rogério Puerta

Conheci, de vista, Andreas Kisser lá pelos idos dos anos 80. Desde sempre chamou muito a atenção, um precoce músico, guitarrista e compositor virtuoso e um verdadeiro gente boa, sereno, de boas.

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Sua carreira artística na banda de heavy metal Sepultura, tais quais outras carreiras, é feita de altos e baixos. É músico reconhecido internacionalmente, apreciado e convidado por artistas e públicos tão díspares quanto os de música axé e de música clássica erudita.

Dentre os fatos desagradáveis e conturbados, ser até hoje defenestrado pelo fundador da banda, que a deixou após álbuns de enorme sucesso e após desavenças com todos os outros integrantes da banda Sepultura. Dentre este desagradável profissional, nada que se compare ao revés de vida particular e sentimental, o passamento doloroso de uma relação estreita de afeto.

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Patrícia Kisser, sua esposa, faleceu há pouco, aos 52 anos, 32 deles dedicados ao companheiro e aos dois filhos e uma filha do casal. Câncer, mais uma vítima dentre tantas dezenas de milhões, a doença que se esconde, possui um escudo hermético, agarra o paciente. Daí o câncer, do latim, mas originário do grego karkínos, caranguejo.

Goste você ou não, aceite ou não, nos anos 90 a banda Sepultura era mais conhecida no exterior do que MPB e bossa nova. Heavy metal, originário desde muito distante, dentre a classe proletária britânica, bairros periféricos industriais de lá. Esta origem, talvez daí um dos motivos para grassar, florescer e frutificar muito bem em Terra Brasilis.

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Muitos são os relatos, alguns verdadeiramente desesperadores, quanto as dores lancinantes e cruentas que acometem pacientes em fases terminais da doença. Há dores e dores, sensibilidades maiores ou menores, injusto categorizar. Dizem que a dor de pedra nos rins é das piores. Pior é a que é muito ruim para alguém, já basta.

Pior, em tese ao menos, são as dores crônicas. As dores agudas se sobe pelas paredes e em segundos ou minutos passam, não as desmerecendo, mas sentir dores 24 horas por dia não é pra qualquer um, no caso de Patrícia Kisser, não foi pouca coisa.

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Entram as religiões, pronto, aí a semente da discórdia, uma avalanche de complicações, tabus, dogmas, pecados mortais imperdoáveis merecedores de um inferno dominado por demônios implacáveis e suas torqueses pontiagudas supliciadoras de nossas carnes blasfemas.

"Não matarás", não, não e mais nãos. Mas vale matar em guerra, sob ordem, vale matar algum impuro infiel cometedor de apostasia, vale sob legítima defesa, vale, vale e vale. O Deus do Antigo Testamento foi o primeiro na História a inaugurar o coletivo do verbo matar: morticínio, chacina, genocídios pra lá e pra cá.

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De leve, apenas matar implacavelmente as criancinhas de berço dos egípcios pagãos da Antiguidade que aprisionavam as gentes de Deus, de leve, coisas assim, além de outras tantas sádicas traquinagens divinas. Contém ironia onde não deveria.

Andreas Kisser está empunhando bandeira justa, necessária, após sentir na pele, coração e alma, uma das vicissitudes da vida: a perda, o ocaso de uma companheira, seu amor, mãe de dois filhos e uma filha frutificados deste amor de mais de três décadas. Pior, muito pior, Andreas sentiu na pele a perda e viu tal perda se dar com os devidos requintes de crueldade. Leia-se dor, sofrimento, muito pesar e lamento.

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Falar sobre dor, sofrimento, é bem chato, incomoda de fato, por isto evitamos filmes, músicas, lugares ou demais referências que nos lembrem as passagens mais sofridas de nossas vivências pretéritas.

Ortotanásia: assim Andreas definiu, e por isto enfrentou preconceitos e barreiras irracionais. A nós já um pouco familiarizados com a Covid-19, seria mais ou menos algo como retirar o tubo, a entubação que permite a oxigenação direta ao pulmão, em um paciente totalmente irrecuperável e que definhará em questão de pouco tempo, mantendo-se a mínima sedação devida para uma tentativa última de alívio da dor. Algo assim, especialistas corrigirão detalhes.

Por que não a eutanásia pura e simples? Que venham e vivam os próximos doutores Jack Kevorkian espalhados mundo afora, os simpáticos doutores morte, que se façam prosélitos. Opinião particular, pessoal, sim, que se diga, por mim, quando atingir o estágio dos tubos espetados, exames incômodos, medicamentos nauseabundos, chegando aí, já era, puxo a tomada geral.

Fácil dizer, esta decisão ainda não chegou, injusto querer antecipar a cabal batida de martelo, mas confesso que tendo a isto, ademais, desapego à carne é coisa cultivada há décadas, desde época muito feliz enquanto jovem adulto, por anos em estudos e práticas kardecistas tempos atrás.

A bandeira empunhada hoje por Andreas Kisser não é leve, nem tímida, miúda, pelo contrário, faz-se visível, inclusive com a organização de um festival de música dedicado à memória de Patrícia Kisser, que visa focar o tema eutanásia e suas variações, arrecadar fundos para a instituição Comunidade Compassiva, que promove cuidados paliativos aos pacientes terminais em situação de vulnerabilidade econômica.

Adentrar a fase paliativa, termo da medicina, também vimos isto na Covid-19. O léxico é sucinto e claro quanto a um dos significados do adjetivo paliativo: remédio, tratamento ou cuidado que não cura, mas mitiga a doença ou o sofrimento por ela causado.

Na espetacular obra "Xógum - A Gloriosa Saga do Japão", James Clavell retrata passagem romanceada de ocorrência provavelmente cotidiana em algum momento do Extremo Oriente antigo. Um infeliz marujo despejado de alguma caravela a singrar mares orientais é capturado, um inimigo.

O infeliz, tido como um bárbaro, vira objeto de experimentos dos soberanos samurais indiferentes à aflição e incômodo de suas gueixas que não mais suportam os gritos horrendos decorrentes da tortura do marujo inimigo, um reles bárbaro primitivo. Cozinham-no vivo, por horas, uma noite inteira, e o soberano samurai sempre sereno, orgulhoso de si, em paz, a refletir acerca do karma desempenhado pelo infeliz marujo capturado.

O soberano conclui que ele, um samurai sábio e erudito, está contribuindo para o karma do inimigo a cozinhar lentamente em enorme caldeirão, pois o bestial marujo bárbaro será um espírito evoluído em próxima encarnação após sofrer uma tortura inimaginável. Irá com isto pagar eventual sofrimento infligido a outros no passado, e então sua alma eterna irá evoluir e se aperfeiçoar mediante a crueza de um implacável sofrimento carnal exemplificador.

Falar sobre dor, sofrimento, é bem chato, incomoda.

Não são poucos também, hoje em dia, que se autoflagelam, se imolam, creem que a dor purificará suas almas eternas.

Analgesia congênita, doença rara em que o sujeito não sente dor. Pode parecer ótimo, qual nada, uma simples pedrinha no calçado por horas a atritar que só será percebida quando o infeliz pé estará em carne viva e os ossos dos dedos já aparentes e deslizando junto à meia do pé totalmente encharcada de sangue.

No magistral "Roots" álbum da banda Sepultura, de 1996, em boa parte composto por Andreas Kisser, talvez um dos mais revolucionários álbuns de todos os gêneros do rock em todos os tempos, o clipe do vídeo da música título ilustra preliminarmente um pensamento do poeta africano Chinua Achebe: "Sofrimento deve ser criativo, deve dar origem a algo bom e amoroso". Ótimo, depois que a dor passou, tira-se algo que valha a pena, mas vivenciar a calmaria pós-tormenta de extremas dores físicas e emocionais compensa?

Falar sobre dor, sofrimento, só aos sádicos/as não incomodaria. Fale-se sobre o cessar a dor, sobre alívio, serenidade, plenitude.

À noite, a mais bela praia marítima deserta que você já viu, não extensa, de pequena dimensão, logo aos lados alguns baixos rochedos e mais acima os morros forrados de vegetação, um verde-escuro tal qual um suave carpete de veludo. Das matas próximas chegam os cantos melodiosos e misteriosos de corujas, sons típicos de outros animais noturnos, tudo a atestar a vida pulsante de um ecossistema em perfeito equilíbrio.

Mesmo à meia-noite, sob a forte lua cheia, noite rara de uma superlua que mais parece um artificial poste refletor ao firmamento límpido, com bem poucas nuvens apenas dispersas, estas, como tudo o mais, levemente banhadas com o belo luar de verão.

Temperatura amena, mesmo à meia-noite não há a sensação de frio, as areias finíssimas e fofas da área seca da praia ainda guardam algo do intenso calor do dia. As areias molhadas são sutilmente afundadas com o seu tranquilo e solitário caminhar, todo o seu corpo e mente leves, seu pisar leve, que o faz sentir tais úmidas areias deliciosas adentrando dentre os dedos de seu pé descalço.

Luar forte e luminoso reflexo das areias de lá, a superlua magistral, ela a muitas centenas de milhares de quilômetros, desde lá irradia refletindo a luz do sol fomentador de toda a vida deste sistema de planetas vizinhos.

Se paraíso na Terra houver, a praia de sua imaginação o é. As águas azul-turquesa daquele braço de mar em enseada, mar calmo, com poucas ondas de agradável sonoridade embaladora de sonhos. Tais águas azul-turquesa sob a nítida luz da superlua assumem uma paleta de cores que beira o indescritível, beira o extraterreno.

O cessar a dor. Visitemos tal fantástica praia quando nosso momento derradeiro se aproximar. Praia inenarrável, somente o maior de todos os poetas, dotado do coração mais sensitivo de toda a Humanidade a descrevê-la.

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