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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Inveja dos mortos

É uma coisa muito dura, é uma coisa muito louca, minha família tava ali do meu lado, minha filhinha me dizia eu te amo, papai, fica com a gente, volta pra mim, e eu ali, deitado, prostrado, sentindo inveja dos mortos

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Kinshasa, Zaire (atual República Democrática do Congo), 30 de outubro de 1974. Cassius Clay, também conhecido como Muhammad Ali, enfrenta o colosso George Foreman para tentar reaver o título de campeão mundial de boxe que lhe fora usurpado em 1967, por causa da recusa exemplar de Ali em servir ao exército dos Estados Unidos na guerra contra o Vietnã.

 

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O boxeador bailarino, em suas flutuações pelo ringue, ficara 3 anos e meio sem poder nocautear os adversários. Em 1970, Ali readquire a licença e parte para a ofensiva. A lenda do boxe ganha duas lutas, mas, ao tentar recuperar o cinturão, acaba perdendo para Joe Frazier. 

 

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George Foreman, por sua vez, havia conquistado a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1968, que ocorreram na Cidade do México. Diante da envergadura colossal de Foreman, Joe Frazier e seu empresário consideram a nova promessa do boxe um lutador lento e sem o devido preparo: “Foreman não é páreo para mim!”. O erro crasso de avaliação custa a Frazier o título de campeão mundial dos pesos pesados, já que Foreman, em 2 rounds, faz Frazier beijar a lona 6 vezes. O juiz logo interrompe o combate e decreta o nocaute técnico que alça Foreman ao panteão do boxe. 

 

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Foreman também venceria a luta contra Ken Norton, o único boxeador que, ao lado de Frazier, havia derrotado Muhammad Ali. Assim, George Foreman, na plenitude de seus 25 anos, desponta como o franco favorito diante dos 32 anos de Ali para a luta-espetáculo que entraria para a história do boxe. (Consta que a luta épica, um dos primeiros eventos promovidos pelo famigerado Don King, teria recebido um generoso patrocínio por parte de ninguém mais, ninguém menos que o presidente do Zaire para que ocorresse em Kinshasa.)

 

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Para tentar derrotar Foreman, Ali lança mão de uma estratégia que teria provocado a inveja de todos os kamikazes de que já tivemos notícias. (Consta que retratos de Ali são cultuados até hoje em casas de sadomasoquismo.) Ciente de que Foreman era muito mais forte e de que não seria páreo para ele na luta franca, Ali decide exaurir ao máximo a força e a resistência de seu adversário. Sempre a nocautear seus oponentes nos primeiros assaltos, o gigante George Foreman jamais havia enfrentado uma luta muito longa. Consta que a ideia para a estratégia usada por Ali contra Foreman teria sido sugerida pelo fotógrafo de boxe George Kalinsky, que assim teria raciocinado: 

 

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– Por que você não faz o seguinte, Cassius: fique deslizando e se esquivando junto às cordas. Assim, quando Foreman tentar te golpear, acontecerá como nos closes das minhas fotos: os socos rasgarão o vazio, e ele só fará nocautear o ar.

 

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(Não sendo a mandíbula fraturada de Kalinsky a sair nas capas dos jornais e revistas, todo conselho de grego dos amigos é válido.) 

 

Dissequemos mais de perto o harakiri de Muhammad Ali: a estratégia requer que o boxeador fique em posição defensiva – na pose clássica de Ali, o lutador se escora junto às cordas, o que faz com que boa parte da energia dos golpes que vai recebendo seja absorvida pela elasticidade do ringue, ao invés de ser arremessada, como um aríete, contra o corpo do lutador. As esquivas de Ali e os muitos golpes no vazio de Foreman permitem os contra-ataques do kamikaze, de modo que a exaustão e os jabs furtivos vão minando os pés de barro do gigante Foreman de 1,92 m. 

 

No início da luta, Ali cumpre a promessa de bailar ao redor do adversário antes de se posicionar junto à trincheira das cordas. (Se Ali houvesse perdido a luta, um poeta presente ao ginásio municipal de Kinshasa bem poderia imaginar que o bailado inicial de Ali ao redor de Foreman teria prenunciado o círculo de fogo que, ao encurralar o escorpião, acaba por coagir o animal a cravar o ferrão em seu próprio corpo.) 

 

Durante os sete primeiros rounds, o público ensandecido urra ao ver que Ali, premido entre as cordas, vai sendo massacrado pelas marretadas de Foreman que, copiosa, insistente e alternadamente, lhe atingem os rins e o fígado, o baço e o estômago. (É visível, no entanto, que a guarda e o pêndulo de Ali evitam que Foreman golpeie seu rosto.) A esmagadora maioria de nós desabaríamos com o mero prenúncio de uma das pancadas. Muhammad Ali, por sua vez, não apenas vai assimilando as dezenas e centenas de socos como, entre um contragolpe e outro, entre um jab furtivo e outro, insulta Foreman para que a fúria ajude a lhe drenar as energias: 

 

– Is that all you got, Foreman?! Me disseram que você batia forte – cadê tua força, hem, cadê!? Minha vó bate mais forte que você! 

 

Ainda assim, vários comentaristas da luta chegaram a vaticinar (e a vociferar) que, diante daquela surra descomunal, Ali não sairia vivo do ringue de Kinshasa. Mas eis que Ali, tenaz como ele só, sai da trincheira das cordas no oitavo round e, sempre a lançar mão da guarda e da esquiva pendular, começa a encaixar jabs de direita e esquerda a castigar os olhos e os supercílios de Foreman, que vão inchando como duas cebolas. Estafadas, lentas e cada vez mais previsíveis, as marretadas de Foreman já não conseguem atingir Ali, e o boxeador bailarino passa a dançar ao redor do gigante até que uma sequência vertiginosa de seis socos contra a cabeça e a mandíbula de Foreman faz o colosso girar ao redor do próprio eixo antes de desabar aos 2 minutos e 58 segundos. O juiz abre a contagem – um Foreman cambaleante recorre às cordas de Ali para tentar se levantar, mas a luta é finalizada. Muhammad Ali recupera o cinturão de campeão mundial dos pesos pesados. 

 

Tal luta foi a primeira derrota de George Foreman, e Ali também entraria para a história como o único boxeador a abater o colosso por nocaute.

 

Após a inacreditável vitória – e após várias semanas de recuperação –, o campeão mundial dos pesos pesados concede uma entrevista coletiva. Invariavelmente criativos, os jornalistas esportivos só fazem surpreender Muhammad Ali e os milhões de telespectadores e ouvintes: 

 

 – Ali, grande campeão, qual foi a sua sensação após a surpreendente vitória naquela que já é considerada a luta do século? 

 

Se Muhammad Ali fosse um jogador de futebol, já saberíamos que, graças a Deus – ou melhor, a Alá –, meu treinador, meus companheiros de equipe e eu conquistamos mais uma vitória pra nossa torcida e somamos mais três pontos em busca do título. Mas, como se trata do espirituoso Cassius Clay, ouçamos o que Muhammad Ali tem a nos dizer após ter sobrevivido à luta do século: 

 

– Alá que está no céu! Depois daquela luta – uma verdadeira vitória de Pirro! –, cada segmento do meu corpo doía... E ainda dói! Foi só então que eu descobri que a gente tem unhas. Você só sabe que tem unhas quando a manicure faz merda – é ou não é? Pois até minhas unhas doíam! Minha esposa e minhas filhas queriam me abraçar e me beijar – eu suspeitava que elas queriam ter certeza, a cada momento, de que eu ainda estava vivo. Ai! Ai, ai! Vocês já sentiram o bafejo cálido da morte? Eu mal conseguia me mover, doía até pra falar, e foi só então que eu descobri que todas as partes do corpo estão interligadas, que o calcanhar se ramifica e faz doer e latejar o maxilar, o nariz e o céu da boca. Mas o pior era quando eu ia urinar, Deus meu! Eu tomei tanta porrada nos rins, mas tanta porrada nos rins, que a urina vinha queimando, ela vinha rasgando, daí, quando ela enfim explodia, eu me via mijando sangue – sangue e pus, e tinha resto de não sei o que ali, era um horror, doía muito, eu berrava como um bebê de colo… Aquilo foi o mais próximo da morte a que eu já cheguei – eu sentia que não ia resistir mais, eu sentia vontade de ir embora, de abandonar tudo, de me olhar de fora, de sair do meu corpo, de fugir de mim mesmo. Eu já não conseguia me lembrar de como era não ter dor, eu já tinha esquecido o que era a normalidade. A gente só sabe que tem um corpo de verdade no prazer e na dor mais intensos, só ali e só então. E agora eu entendo aqueles prisioneiros dos campos de concentração que diziam que a morte já não era nada, que a morte, na verdade, vinha para redimi-los. É uma coisa muito dura, é uma coisa muito louca, minha família tava ali do meu lado, minha filhinha me dizia eu te amo, papai, fica com a gente, volta pra mim, e eu ali, deitado, prostrado, sentindo inveja dos mortos.

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