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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Miguel Arraes e Reginaldo Rossi

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Entre o nascimento de Miguel Arraes e a morte de Reginaldo Rossi, como os dois fatos se encontram? Creiam, essa reunião arbitrária é mais que a vizinhança de suas vida e morte no calendário. Arraes nasceu em 15 de dezembro, enquanto Reginaldo faleceu no próximo dia 20. Explico já a aproximação entre ambos. 

Na primeira lembrança bem-humorada: José Múcio, que disputou as eleições para governo do estado contra Arraes em 1986, contava que no interior, antes de um comício, precisou ir ao banheiro. Não havia nada de sanitário em torno, mas ele estava agoniado. Então José Múcio e comitiva entraram às pressas num colégio onde havia um só banheiro. Porta fechada. Bateram, e uma voz feminina respondeu: 

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- Tem gente. 

Mas o puxa-saco, diante da urgência do chefe, intimou:

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-Abra! É o futuro governado de Pernambuco. 

E a mulher: 

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- É Arrai?

E o puxa-saco:

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- Não. É o doutor José Múcio. 

Ao que a mulher respondeu: 

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- Oxe, agora é que eu não saio mesmo! 

Na segunda lembrança, desta vez para os dois juntos, vem um comício de  Arraes em 1986, também na campanha para governador de Pernambuco. O que vou contar se deu na praça da Vila dos Comerciários, em Casa Amarela, no Recife. Em contraste com os trajes formais do maior político pernambucano, Reginaldo Rossi tinha a camisa aberta ao peito, calças justas, cabelo black power. Ali,  Rossi era uma atração máxima, pois chamava o público mais despolitizado. Era necessário. Arraes sempre foi um político de ideias de esquerda, mas isso ele fazia ao lado de um grau imenso de pragmatismo. Quem era o rei que atraía o povão? — Reginaldo Rossi. Então vamos a ele. E assim foi.

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É verdade que Reginaldo Rossi sempre esteve ao lado de um ideário que se assemelhava à esquerda. O que é isso? Era não ficar ao lado dos que apoiaram a ditadura. Mas o diabo é que Reginaldo sabia do poder de sedução da sua arte, e não se intimidava diante dos deuses mais sagrados da esquerda em Pernambuco. O que isso queria dizer, amigos? Imaginem e acompanhem. Quando ele tomou a frente do palanque, depois das palavras de apoio ao líder Arraes, em uma fala misturada de gíria maluca dos palcos e do povão, o rei Reginaldo começou a cantar: 

“Ai, amorVocê diz isso com jeitinhoAi, amorQuando eu te faço algum carinhoAi, amorEsse suspiro vem de dentro de vocêAi, amorÉ tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor
Quando eu te aperto em meus braços, ai amorE quando eu sinto teu mormaço, ai amorTambém suspiro e fico louco sem querer, ai amorEssa loucura do amor me faz dizerQue eu não vivo sem vocêQue só você me satisfazQue eu morreria nos teus braçosFeliz ouvindo esses teus 'ais'!Ai, amor
Ai amor, também suspiro e fico louco sem quererAi amor, essa loucura do amor me faz dizerQue eu não vivo sem vocêQue só você me satisfazQue eu morreria nos teus braçosFeliz ouvindo esses teus 'ais'!

Ai amor. Ai, ai.” 

A essa altura, o povão aumentou na praça, em grupos os mais caóticos, chamados primeiro pelo som dos alto-falantes que estrondava com a voz de Reginaldo Rossi. Mas não só. E vamos ao mais importante: além da letra da canção, quando Rossi cantava, havia uma entonação, ia dizer safada, mas não era isso. 

https://www.youtube.com/watch?v=dXR0iKzwAYw

Havia um tom de deboche, de saber o que a massa queria ouvir, pois ele sabia o que a população gosta de fazer e não declara de modo público. Quando Reginaldo suspirava, em voz quente, o apelo “ai, amor”, uma nuvem de poeira subia. As camisas giravam por cima das cabeças, que deliravam como se estivessem em uma encenação pornográfica, em um verdadeiro e popular império dos sentidos. Não era cinema, mas, sem olhos oblíquos do oriente, com olhos de índio do Recife, era um império dos sentidos. “Ai, amor”, Reginaldo repetia num requebro. Olhem, eu declaro que me senti muito envergonhado, ao mesmo tempo que não conseguia tirar os olhos do palco. E por isso, cravei os olhos no candidato Arraes, que estava recuado, mal escondido dos volteios dos quartos de Reginaldo. 

No primeiro “Ai, amor”, foi bem clara a desaprovação do candidato da frente popular. Arraes olhou atravessado para o rei Reginaldo e pigarreou alto. Para quê? Reginaldo abriu um sorriso e os braços para um mais largo ainda “ai, amor, também suspiro e fico louco sem querer”. Então Arraes baixou a cabeça, como quem diz “isso é muito constrangedor, as bandeiras da frente ampla do Recife estão amplas demais para mim”, mas calou, e na continuação do “é tão gostoso ver teu corpo estremecer, ai, amor”, Arraes entrou em um mudo e imóvel silêncio. Para maior liberdade do rei Reginaldo, que tinha a massa de revoltados sem rumo na canção. Isso eu vi naquela eleição, e tratava essa lembrança até então como um fato curioso, cômico, entre a gravidade de Arraes e a interpretação de Reginaldo Rossi. 

Ai, amor. No comício de Arraes em 1986, o povo pulava, agitava-se, gritava, diante da ambiguidade do cantor a girar os quadris em movimentos que imitavam um coito em pé. Ou melhor, Reginaldo fazia movimentos, meneios do puro oferecer, um convite irresistível ao que virá, ou devia vir. Aqueles quadris eram uma representação do ato amoroso, da dor que não é dor embora lembre a dor. 

Hoje, lembrando esse comício, imagino que se Arraes desse brecha, como falamos aqui no Recife, Reginaldo Rossi iria abraçá-lo e beijá-lo, enquanto lhe suspirasse “Ai, amor”. Imaginem: Arraes teso e imóvel, abraçado e beijado por Reginaldo Rossi aos requebros. Eu não quero nem pensar. A lembrança do escândalo que seria acaba aqui.  

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/miguel-arraes-e-reginaldo-rossi/

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