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Paulo Moreira Leite

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Mortos do Covid-19 falarão por nós

"Todo e qualquer esforço para defender cada vida humana está mais do que justificado. Toda tentativa de diminuir essas mortes é uma forma de crime moral", escreve o jornalista Paulo Moreira Leite ao avaliar eventuais comparações entre a tragédia do novo coronavírus na Itália e no Brasil

Itália registra 793 mortes por coronavírus em um dia e total vai a 4.825 (Foto: Flavio Lo Scalzo/REUTERS)
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Por Paulo Moreira Leite, para o Jornalistas pela Democracia

"Estimulados pela 'gripezinha' de Bolsonaro, aliados do governo demonstram pouca consideração pelas vidas humanas", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pelas Democracia

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Nestes primeiros meses de 2020, quando o Covid-19 se apresenta com os sinais de uma catástrofe colossal, convém reconhecer uma verdade fundamental.

Além de dizimar milhares e até milhões de vidas, as grandes epidemias enfrentadas pela humanidade ao longo de séculos  costumam servir de teste sobre os valores e que sustentam -- ou corroem -- cada sociedade.

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Em seus primórdios, círculos preconceituosos apresentavam a AIDS como uma revolta da natureza contra um  comportamento sexual fora dos padrões, devidamente castigado com a morte. O costume vem de longe.

No século XIV, a peste negra -- que dizimou entre 75 e 150 milhões de europeus, modificando drasticamente aquilo que chamamos de Velho Mundo -- era apresentada pela Igreja, potência política e cultural da época, como punição pela falta de fé de homens e mulheres.

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No início do século XX, o necessário combate à varíola no Rio de Janeiro abriu caminho para a expulsão -- com métodos violentíssimos -- da população pobre da região central, a mais valorizada da capital da República.  

Conforme se comprovou nas décadas seguintes, nascia ali a doutrina fundadora da República Velha, de que só havia um meio eficaz para o Estado enfrentar uma mobilização popular:  "a questão social é um caso de polícia".

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No mundo do século XXI, a explosão devastadora do Covid-19 é incompreensível sem um ajuste de contas com o movimento de ideias que colocou de pé a doutrina do Estado Mínimo, destinada a derrubar as variantes do Estado de Bem-Estar social construído no pós-guerra.

"Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos", formulou Margaret Thatcher, a primeira encarnação viva de um pensamento nascido na década de 1930 para combater as ideias de John Maynard Keynes. Nem  comunista nem socialista, Keynes estava convencido de que o mundo capitalista funcionaria melhor com distribuição de renda e desemprego baixo, o que deveria levar o Estado a fazer investimentos nessa direção.

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Num mundo em que "não existe essa coisa de sociedade", acredita-se piamente na tese de que a dinâmica da economia se baseia no egoísmo dos indivíduos, o que torna difícil enfrentar e vencer catástrofes coletivas -- em particular epidemias, que envolvem as fúrias indomáveis da natureza. Se a razão do progresso é o egoísmo, visão consagrada por Adam Smith, um dos pais ideológicos do capitalismo, por que acreditar em igualdade, solidariedade?

Este  universo tem sido revelado cotidianamente pelos mortos do covid-19, cujo símbolo maior se avista no cortejo de   caminhões do Exército italiano, transportando milhares de cadáveres até o crematório mais próximo.

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No Brasil de 2020, o encontro do coronavírus com o neo-liberalismo produziu uma nova forma de  banalização do mal, a expressão clássica de Hanna Arendt para designar o conformismo que permitiu a classe média e alta da Alemanha compactuar com os horrores do nazismo sem sentir peso na consciência.

No Brasil, país onde o próprio ministro da Saúde admite que o sistema de saúde irá "entrar em colapso" nas próximas semanas, Jair Bolsonaro definiu o covid-19 como uma "gripezinha".

Aliados   e amigos do presidente tem sido mais explícitos em condenar o confinamento de trabalhadores, até hoje a única forma conhecida para se TENTAR impedir um avanço da pandemia, sugerindo que se trata de um desperdício de pessoas e recursos.   

"Doze mil mortes em 7 bilhões de habitantes é muito pouco para criar essa histeria coletiva", disse o publicitário e apresentador Roberto Justus, empregando números globais para tentar contestar a reação inconformada que as mortes pelo covid-19 tem provocado em várias partes do planeta.

Outro adversário do confinamento, o empresário Junior Durski, da cadeira de restaurantes Madero, afirma que a medida terá "consequências econômicas muito maiores do que as pessoas que vão morrer por conta do coronavírus". Durski estima que estas serão entre "5 e 7 mil pessoas".

Concentrando-se em argumentos estatísticos para minimizar a tragédia, ambos ignoram o ponto essencial em debate -- o valor insubstituível de cada vida humana -- e mergulham numa armadilha penosa, inevitável sempre que se procura quantificar uma tragédia.  

Alvo principal dos crimes de Hitler, na década de 1930 a população judia da Alemanha era Constituída por 500 000 pessoas, inferior a 1% da população do país. É pouco ou muito?

Qualquer tentativa de comparar a tragédia italiana, a mais grave do planeta  pelos dados de hoje, com o desenvolvimento do Covid-19 no Brasil implica num desafio imenso.

Nosso país tem uma população três vezes maior que a italiana, com uma pirâmide social recheada por desigualdades radicais, onde a construção de um Estado de bem-estar social foi interrompida antes que pudesse ser terminado.

Nesta condição, todo e qualquer esforço para defender cada vida humana está mais do que justificado. Toda tentativa de diminuir essas mortes é uma forma de crime moral.

Alguma dúvida? 

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