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Carlos Carvalho

Doutor em Linguística Aplicada e professor na Universidade Estadual do Ceará - UECE.

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Natividade

Chegado ao fim do ano, como de costume, tentamos ficar mais leves e pensar positivo a ponto de imaginarmos uma luz no fim do túnel. A realidade, no entanto, não permite que os cronistas, por exemplo, apontem seus olhos para questões mais “palatáveis"

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Na crônica da semana passada apresentamos os dados da Rede de Observatórios da Segurança e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cujos estudos apontaram que no ano de 2019, 74% dos homicídios ocorridos no país vitimaram pessoas negras. 79% dos mortos pela polícia também eram pessoas negras. A maioria dos mortos pelas polícias do Ceará, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de janeiro, no ano de 2019, é negra. Os estudos confirmaram o que os brasileiros pobres e pretos sabem desde sempre. Os índices divulgados registram que na Bahia, 97% dos mortos em ações policiais eram negros. Em Pernambuco, 93%, no Ceará, 87%, no Rio de Janeiro, 86% e, em São Paulo, 63%. Sobre os números estarrecedores apresentados, muito pouco se falou. O racismo estrutural que permite tamanho atentado à vida não causa mais espanto. Estamos no fundo do poço da decência, no nível mais baixo do humano, a caminho da barbárie. 

Chegado ao fim do ano, como de costume, tentamos ficar mais leves e pensar positivo a ponto de imaginarmos uma luz no fim do túnel. A realidade, no entanto, não permite que os cronistas, por exemplo, apontem seus olhos para questões mais “palatáveis”. E assim sendo, nossa alucinação, como bem diz o poeta, consiste em suportar o dia-a-dia, e nosso delírio é essa maldita experiência com coisas reais. A realidade brasileira tem adoecido muita gente. Estamos perdendo nossos parentes e amigos. Todo dia perdemos alguém. E enquanto morremos, a possibilidade de uma vacina é politizada por homens e mulheres no exercício de uma necropolítica que não leva a nada, a não ser ao caos. A tanatofilia, marca do atual governo brasileiro, normalizou a peste como um dos seus muitos cavaleiros da destruição. De mãos dadas, o poder e a peste seguem sem que nada ou ninguém consiga impor-lhes os devidos freios institucionais. 

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Na crônica de hoje, gostaria imensamente de estar falando sobre outra coisa, o livro Devoção (2018), da Patti Smith, por exemplo, ou das artes de pintar e destruir brinquedos da minha filha mais nova. Gostaria também de estar escrevendo aqui sobre as “peripécias” de alguns amigos e amigas, professores e professoras, que se tornaram reféns do ensino remoto, dormindo, sonhando e acordando com as plataformas virtuais com as quais têm trabalhado nas escolas e universidades. Eles e elas também estão cansados, extenuados, na verdade. Mas estão lá, na linha de frente, lutando com palavras contra as aberrações fascistóides que se proliferam. Em outro momento, numa outra crônica, falaremos mais sobre eles e elas. Sigamos.

Mas chegou o final do ano, e com ele o Natal. Corro ao dicionário e busco um significado para a palavra “natividade”. Confirmo tratar-se de uma palavra que indica “nascimento”, especialmente o nascimento de Jesus Cristo. Leio nos jornais que mais dois jovens negros foram assassinados pela polícia: Edson Arguinez Júnior, de 20 anos e Jhordan Luiz Natividade, de 17. Releio o significado da palavra “natividade”. Adoeço. Abandono de vez a ideia de escrever sobre o livro da autora de Horses (1975) e Just kids (2010). Patti Smith pode esperar. 

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Faço minhas as palavras da mãe de Edson, quando pergunta: “dois rapazes pretos não podem andar de moto?”. Todos sabemos a resposta, dona Renata. E envergonhados, nos desculpamos. Mas desculpas só não bastam, pois nosso silêncio e nossa indiferença também puxaram o gatilho da arma que matou seu filho. É o mesmo silêncio e a mesma indiferença que também mataram Emily e Rebecca. Emily tinha 4 anos de idade. Rebecca tinha 7. Os pais de Emily e Rebecca nunca mais poderão vê-las brincar na calçada. Também não terão mais a oportunidade de rir das suas artes de pintar ou destruir brinquedos. Eram apenas duas crianças. Duas crianças pretas não podem mais nem brincar na calçada de casa? Edson, por sua vez, tinha 20 anos. Jhordan tinha 17. “Dois rapazes pretos não podem andar de moto?” Os tiros do Estado dizem que não. Eram só dois garotos. Eram dois garotos negros. Emily tinha 4 anos de idade. Rebecca tinha 7. Edson tinha 20 anos. Jhordan Luiz Natividade tinha 17.Natividade significa nascimento, especialmente o nascimento de Jesus Cristo. Então é Natal, e o que fizemos de nós? 

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