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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

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Normalidade

O Estado, em São Paulo, só se faz visível quando se ouvem os estampidos, curtos, secos, gaguejantes, dos projéteis. Melhor não se fizesse escutar, como na última sexta-feira, aulas de reforço interrompidas, às pressas

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Boa tarde. Vocês são da ongue, tu é gringa? Sou não, posso ajudá-la? Vocês alfabetizam adultos? Li aqui no papel da igreja que há 28 milhões de velhos no Brasil, não sou analfabeta, estudei até o terceiro ano. Ainda não temos alunos adultos, mas está nos nossos planos. Tá, fiquem com deus. 

O diálogo, na porta da modesta construção irregular, dois pisos, uns 40 metros quadrados no total, se deu na porta, caixilho por moldura. Ao fundo, na rua, um moleque de uns 20 anos, chinelos, camisa de um time de futebol, com um fuzil. Podia ser um guarda-chuva mas era uma arma, extensão de si mesmo. 

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Saiu para espiar. Aquele não era o único armado. Havia outros. Um aleijado com um fuzil ainda maior, manquitolando, braços aparentando descoordenação, rosto de deficiente mental. Uns 22 ou 23 anos, no máximo. E outros com pistolas. 

Na esquina, logo ali, dois mudos conversando como proseiam os mudos, caretas e agitadas mãos entre grunhidos. São sentinelas, explicou a professorinha da ONG. Nervoso, tentou fazer piada, mudos, como fazem para avisar. Ela não riu. Fê-lo atentar para estarem armados. 

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Pouco adiante, entre a banquinha de frutas e a de bugigangas eletrônicas, também em tabuleiro sobre precários cavaletes, saquinhos de pó e trouxinhas de erva. A vendedora, calção justo enterrado nas artificiais nádegas construídas, os silicones empelotados, disformes, camiseta sem sutiã, travesti de uns cinquenta anos, cara deformada. Pertinho, outro tabuleiro, lona azul por cobertura e nas laterais, com idêntica mercadoria bem arrumada, o tiozinho em cadeira de rodas e uma espécie de metralhadora portátil. 

Um carro da polícia, dois meganhas, colete à prova de balas sobre o uniforme. Armas no coldre. Bem perto da sede da escolinha e dos ambulantes referidos. Eram todos invisíveis. O Estado, de farda, para os que trabalham na boca; os comerciantes, cada qual com seus defeitos e com suas mercadorias, invisíveis para o Estado, assim como os 12 mil habitantes na cidade encarapitada morro a cima e a baixo, com suas ruelas, seus esgotos a céu aberto, seus gatos, emaranhados de fios e gambiarras.

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O Estado, em São Paulo, só se faz visível quando se ouvem os estampidos, curtos, secos, gaguejantes, dos projéteis. Melhor não se fizesse escutar, como na última sexta-feira, aulas de reforço interrompidas, às pressas. 

Mulheres, gordas, magras, mal-vestidas, tomando cerveja, copos na mureta. Homens, bermudas, chinelos, camisetas, fumando cigarrinhos finos, enrolados há pouco. Uma igreja evangélica, pequenas lojas, cada um cuidando de sua vida. E os dois meganhas de coletes a prova de balas, óculos escuros, fones de ouvido, cuidando da deles. Um dia normal na periferia paulista, sem intercorrências, sem surpresas, sem sobressaltos. 

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Um rufar, zabumba, surdo de segunda, incomodando no peito do pai que foi visitar a escolinha do projeto social da filha. Um dia estranho, esquisito. 

Hoje não veio o irmão insistir na necessidade de levar a palavra às desbocadas crianças. Vem sempre. Não desiste. Respeita a escolinha, mantém a esperança de, com a palavra, salvar as almas daquelas vidinhas que não merecem ser vividas. Teimosos, sobrevivem enquanto dá, do jeito que dá. Tudo normal.

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