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Marcelo Moraes Caetano

Psicanalista, doutor em Letras, professor adjunto na UERJ. Autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior

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Normose: por que a normalidade pode se tornar patológica?

Os riscos do conservadorismo ao Estado de direito

(Foto: Shutterstock)
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As normas de convivência social ditam aquilo que uma coletividade convencionará chamar de “normal” ou de “normalidade”. Essas normas podem estar escritas no direito (como normas jurídicas) ou ser apenas consensos sociais não escritos. Quando alguma pessoa infringe uma norma escrita no direito, estará cometendo uma ilegalidade, que terá sempre uma contrapartida punitiva prevista. Já quando uma pessoa burla uma norma que não está escrita no direito, comete um ato antiético, que pode ser considerado imoral (ética e moral são questões diferentes, que discutirei em outros momentos), ou que simplesmente a coletividade classificará como um ato “mal-educado”. Para esses atos a sociedade também possui coerções, que não deixam de ser punições, mas sem força de lei.

Se uma pessoa fura uma fila, por exemplo, ela a princípio está cometendo um ato imoral, ou seja, que, naquele contexto, é considerado “errado”. Provavelmente as pessoas da fila exercerão seu poder coercitivo demonstrando sua indignação à pessoa que furou a fila. No entanto, supondo-se que se trate de pessoa idosa a ter a mesma atitude, o ato imediatamente ganha novo contexto e passa a ser perfeitamente moral, ou seja, “certo” dentro do contexto em que ocorreu. 

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É por essa questão que a moral é bastante relativa e se atrela a culturas específicas em que é inserida. Até pouco tempo atrás, mulheres não podiam usar calças. Se uma mulher usasse, isso seria considerado “imoral”, ou seja, seria tachado como “errado”. Com o tempo, essa “norma” social foi demonstrando sua incoerência, foi se tornando ineficaz, e, enfim, deixou de ser uma “norma”, uma “normalidade”. 

É isso que ocorre com as normas e com as normalidades. Elas vão necessariamente se modificando com o tempo. As raízes das normas e das normalidades estão sempre no passado, mas é o tempo que acaba esculpindo nelas suas novas feições.

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Quando nós nascemos, todo um conjunto de normas já está pronto. Nós temos de nos sujeitar a esse conjunto de normas praticamente de forma passiva. Isso é o que Durkheim e Saussure, por exemplo, chamaram de um “fato social”. 

Cada um de nós, isoladamente, parece não ter poder suficiente para mudar essas normalidades que já estavam lá quando nascemos. Afinal, não somos seres isolados, mas seres que convivem em sociedades e que, para isso, precisam compartilhar as regras do mesmo jogo consensual. Isso é a base da cultura e a base da civilização. Se não queremos compartilhar regras com nossa coletividade, teremos de optar viver como ermitões num local isolado de tudo e de todas as demais pessoas. Quando Wittgenstein trata da língua, em sua segunda obra, Investigações filosóficas, como “jogos de linguagem”, está mostrando a importância dos “fatos sociais” que a língua, como centro das culturas, representa. 

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Em conjunto, no entanto, podemos – e conseguimos – modificar essas normas que já estavam lá quando nascemos. O fato social, então, não permanece estagnado. Quando Marx fala de massa crítica, por exemplo, não deixa de estar aludindo ao grupo social que já pode subverter uma infraestrutura através de práxis transformadora. Paulo Freire também trata evidentemente da questão, sublinhando a importância da educação justamente como fator de práxis transformadora e aproximativa do bem-estar individual e social, que se baseia no desmascaramento das formas de opressão. 

Quando pensamos em civilização, a palavra mais imediata que deve surgir é INCLUSÃO. A civilização, no sentido contemporâneo, está intrinsecamente ligada à capacidade que os povos têm de INCLUIR as diferenças e as diversidades, o passado e o presente de costumes, sem que nenhum grupo ou costume tenha poder suficiente para oprimir outro grupo ou costume. 

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Atualmente, muitos pretensos humoristas têm feito “piadas” sobre questões que ferem a coletividade e a diversidade multicultural. Esses “humoristas” quase sempre são punidos, com demissões, desmonetizações e até processos criminais. É curioso que quase sempre essas pessoas se mostram indignadas e acham que estão sendo “censuradas”. Na verdade, elas estão apenas sendo lembradas de que, se querem continuar vivendo em sociedade, precisam compreender que a civilização, de cujos benefícios elas gozam, exige que tenhamos respeito pelos grupos minoritários ou diversos. 

É ainda mais curioso que esses “humoristas” costumam dizer que os grupos oprimidos são “frescos”, cheios de “mimimi” (expressão que eles adoram usar), que são “vitimistas” quando reivindicam seus direitos de existência IGUALITÁRIA. Mas esses mesmos “humoristas” gritam e esperneiam (o que eles próprios classificariam, nos outros, como “frescura” ou “mimimi ou “vitimismo”) quando se acham “censurados” por aquilo que nada mais é do que o processo civilizatório em si mesmo, que exige a convivência sem discriminação, inegociavelmente inclusiva. 

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Quando se pergunta “qual é o limite do humor”, a resposta é muito simples: há um limite, sim, e o limite é: não se bate em quem apanha socialmente. Não se faz “piada” com alguém que, na materialidade da história, já faça parte de um grupo que é alvo de opressão. 

Se a pessoa deseja conviver em sociedade, e em sociedade civilizada, e em sociedade civilizada de Estado de direito, ou ela aprende as regras do jogo ou ela necessariamente será punida. Lembremos que essa pessoa (esses “humoristas”, por exemplo) sempre terá o direito de optar viver isolada no alto de uma montanha sem nenhuma pessoa ao seu redor ou cercada unicamente de pessoas que “pensam” como ela... Porém, se ela quiser viver no meio de uma coletividade multicultural,  gozando dos privilégios desse tipo de sociedade, precisará entender que o respeito e a inclusividade são os comportamentos mínimos que lhe serão exigidos, tanto do ponto de vista ético, quanto moral e legal. 

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Quando falamos de cultura, nada é simples. Sempre se precisará abordar o tema de forma complexa e com múltiplas perspectivas. O que nos distingue como espécie é exatamente o fato de que dispomos de culturas altamente complexas. O desafio da civilização e do Estado de direito será, sempre, a inclusão, como meta inegociável, de todo esse espectro complexo. 

Não é por acaso que o binômio viver-conviver cria equações que só tendem a se tornar ainda mais complexas diante da realidade multicultural do mundo em que estamos, em que o Brasil, particularmente, se destaca, dada a riqueza cultural e a imensa diversidade que nos constrói como Nação. Diversidade étnica, diversidade religiosa, diversidade linguística, diversidade sociocultural, diversidade socioeconômica... É por essa razão que, no século XX, especialmente com seu arquitexto O mal-estar na civilização, Freud oporá “civilização” e “barbárie”, de forma que se busque o denominador comum ao ser humano no colateral “mal-estar” que é inevitavelmente ocasionado, pela lúcida tese freudiana, quando precisamos abrir mão de parte do desejo e da libido para nos mantermos “civilizados”, e não em estado de “barbárie”. Falar em processo civilizatório é necessariamente falar em cultura. Cultura e civilização são praticamente sinônimos, nesse sentido. Marcuse, em Eros e civilização, muito acertadamente esboça todo um quadro distintivo entre um conceito e outro, que abordarei em momento adiante. O próprio clássico de Freud, O mal-estar na civilização, tem seu título original em alemão com algo que seria como O mal-estar na CULTURA (Cf. Das Unbehangen in der Kultur).

Há obviamente pontos de interseção entre os conceitos de cultura e de civilização, um é intrinsecamente ligado ao outro, mas, na antropologia mais contemporânea, a ênfase que se dá à cultura como elemento autônomo e legítimo de um povo é muitas vezes confrontado, com razão, com todo o aparato cognitivo que envolve o conceito de civilização, que parece nascer, inclusive, de uma visão urbana, mercantil, eurocêntrica, colonizatória etc. 

Debaterei muito essa distinção, porque se trata profundamente de nós, brasileiros e brasileiras, nos identificarmos, como povo e Nação, mais a partir da nossa cultura própria e popular do que a partir das imposições colonialistas e “mercantil-salvacionistas” (como ensina Darcy Ribeiro) que nos impuseram e nos impõem até hoje.

Então, as sociedades são baseadas em parâmetros e padrões, evidentemente coletivos, que estabelecem genericamente, sobre cada indivíduo, o que é “normal” e, em oposição àquele padrão, o que não o é. A “normalidade”, nesse sentido, tende a ser uma média de atitudes, cognições, hábitos, costumes e comportamentos que ou bem são aceitos por um maior número de pessoas, ou bem são aceitos pelas pessoas que detêm prestígio sociocultural ou socioeconômico nas sociedades.

No entanto, essas normalidades podem não condizer com o momento presente e/ou com a realidade empírica de vastos grupos de pessoas no seio da sociedade. Quando isso acontece, os ditames das normalidades começam a ser patogênicos, ou seja, começam a causar inquietação individual e social, perturbações que, de alguma forma, precisam ser confrontadas.

Trata-se da normose. A normose é um apego excessivo a normas e normalidades que, com naturalidade ou por mera inércia, se enraízam no passado, como vimos. Esse apego delineia a atitude do conservadorismo, que parece sentir uma nostalgia e um saudosismo a todo o conjunto de comportamentos e pensamentos do passado, como se fossem e se mantivessem “bons” pelo simples fato de serem do passado. Mário de Andrade nomeia esse sentimento como “passadista”, num neologismo muito interessante. O conservadorismo, nesse sentido, é passadista quando se apega com unhas e dentes a normas do passado que já não têm representatividade e legitimidade alguma no presente – o que configura a normose.

A normose, então, é o fenômeno que se ocasiona exatamente quando uma normalidade ou mesmo uma norma (escrita ou tácita, dentro ou fora do direito) causa, no presente, sofrimento, desconcerto social, descompasso antropológico e cultural, por ter origem no passado e, por várias razões, estar em conflito com o tempo e com o espaço presentes. É um conceito que se correlaciona e se complementa com muitos outros, como o de “discursos reguladores” de Foucault, que Judith Butler tanto evoca para tratar dos atos performativos de sexualidade (baseados em papéis de gênero preestabelecidos) e sua relação com o poder (o que ligo à psicanálise de Adler, mais do que à de Freud), que, por sua vez, é estabelecido, como salienta Freud, no que se considera “normal”, e que, como vimos, pode se tornar uma normose, um “normal” que causa os aludidos sofrimentos. Também são evidentes as correlações com o conceito de “normopatia” em Joyce McDougall.

Assim, basicamente, quando falamos de normose, trata-se do desgaste de uma norma social e cultural, que passa a não mais corresponder ao espaço e/ou tempo em que ela vigora. Esse desgaste causa uma representação social de normalidade e do que é aceito consensualmente como normal, e que, apesar disso, pode gerar sofrimentos, doenças, depressões e mortes, como explica Pierre Weil. Isso se dá porque os paradigmas sociais que representam o que é normal precisam ser criados a partir de generalizações advindas de hábitos e costumes do passado, e isso faz com que nem todas as pessoas se encaixem naquela normalidade social-cultural propagada, o que ainda é acirrado à medida que o tempo passa.

O embate humano, que exige toda a complexidade, podemos assim dizer, se estabelece pelo fato de que nossa subjetividade (ou individualidade, como querem algumas correntes) precisa se expressar, quase paradoxalmente, num ambiente não individual, mas coletivo. E a coletividade impõe em nossas visões de mundo traços que, sempre, de alguma forma, estarão defasados em relação ao presente temporal e espacial. 

Enquanto gramático e filólogo, lido com essa constatação o tempo todo: uma norma estabelecida num dado momento da gramática normativa de um idioma será sempre um retrato retrospectivo, e não necessariamente prospectivo, dos costumes linguísticos de um povo. Como antropólogo e psicanalista, são as mesmas percepções que me carreiam: normas, mesmo que inseridas no ordenamento jurídico, retratam antes o passado do que o presente, razão por que o direito está sempre se adaptando aos costumes culturais dos povos que rege, a fim de não permitir que um vácuo entre os costumes e as leis se deteriore em estado de anomia e anarquia.

A manutenção do Estado de direito pressupõe o reconhecimento de normas e normalidades desgastadas – normoses – para derrubar esses paradigmas, como diria Thomas Kuhn, a fim de que elas não causem rompimentos anticivilizatórios de barbárie na sociedade. Se o direito não reconhecesse, por exemplo, que o casamento entre dois homens ou entre duas mulheres tem exatamente as mesmas prerrogativas e obrigações do casamento entre um homem e uma mulher, esse vácuo traria, com o tempo, uma desconexão civilizatória, que acarretaria caos, anomia e barbárie. 

Dentro deste exemplo, vemos que o conservadorismo que se apegue ao casamento como um “modelo” exclusivamente entre um homem e uma mulher é um fator de desestabilização social, e não de estabilidade, como os conservadores acreditam ser, porque impõe sobre a sociedade uma “normalidade” que em absolutamente nada retrata o presente, sendo totalmente desinvestida de qualquer legitimidade social. 

Assim, o grande risco do conservadorismo, nesse aspecto, é exatamente desestabilizar o Estado de direito, toda vez que se agarra aferradamente a práticas e pensamentos do passado que não ecoam legitimamente no presente. É claro que, como se percebe, falo do conservadorismo que tende ao reacionarismo, quando especifico que o risco que ele representa se dá APENAS QUANDO o apego ao passado é excessivo, inercial, e não leva em consideração que pensamentos e costumes mudam ao longo da história humana, devendo caminhar no sentido das práticas de inclusão, que nada mais são do que práticas civilizatórias.

Então, como apontam os estudos da normose, o fato de estarmos inseridos em células sociais cobra o preço de que certas regras e normalidades imputam sobre o indivíduo a condição de abrir-se mão, em algum grau, da sua própria individualidade ou subjetividade. É por isso que a normose, assim como a neurose, causa sintomas psíquicos nas pessoas. E ambas, também, retiram do sujeito parte substancial do prazer, oferecendo-lhe, em seu lugar, um substitutivo social qualquer, que pode ser categorizado como uma compensação, que seria como uma espécie de “prêmio de consolação” por aquilo de que precisamos abrir mão. 

O normótico é esse tipo de conservador que se agarra a “normas” e “normalidades” do passado que não são nada coerentes ou legítimas em relação ao presente. O normótico terá, sim, sintomas psíquicos específicos, que podem ser comparados aos sintomas psicanalíticos da neurose, mas com traços que diferenciam uma estrutura de outra. 

Quando precisamos abdicar de nossas subjetividades e identidades em função de normas que são letras mortas (que já não representam os costumes e usos concretos das sociedades a que deveriam servir), então estamos diante do caso do nascimento ou do aprofundamento de uma normose. 

Quando o sofrimento psíquico é causado por uma necessidade de adequação a normas discrepantes de fatos sociais que as coletividades já sentem como éticos e morais, a patologia não será da pessoa, mas da sociedade. Isso não impede que esse sofrimento coletivo se irradie e ecoe no indivíduo. O normótico, assim, faz a sociedade sofrer com seu apego aferrado ao passado, com seu conservadorismo passadista, mas, por outro lado, sofre ele próprio com sua atitude desconectada da realidade que o circunda. Nesse sentido, o normótico possui, além de traços da estrutura neurótica, também traços da estrutura psicótica (ao se descolar da realidade) e até perversa (ao impor sofrimento sádico a outras pessoas, e masoquista a si próprio).

A pessoa que se ajustar demais a normas desajustadas incorre em patologia individual e coletiva, em si mesma e no outro. A normose, assim, é, no âmbito social, uma norma ou conjunto de normas em desacordo com a realidade dos costumes. E, no âmbito individual, é o sofrimento que a pressão por ajustar-se àquelas normas dissonantes causa.

Conservar normas que já não podem ser conservadas, por acarretarem falta de inclusão social, causa o complexo de sofrimentos individuais e coletivos que são o cerne da normose. É por isso, mais uma vez, que o Estado de direito precisa se basear na quebra desses paradigmas normóticos, e não na sua conservação. 

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