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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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O Dom Quixote na visão do novo ministro da Educação

Desprendimento heróico, hodierna etapa, putrefatas águas, interesses clânicos.... meu Deus. O que dizer? Só isto: o futuro ministro interpreta com absoluta falta de educação o livro que o gênio de Cervantes escreveu. A essa interpretação liberal podemos aplicar o que o Dom Quixote falou, depois de uma feia queda do cavalo: Aqui foi Troia ! Aqui a minha desgraça me tirou as glórias que eu alcançara

O Dom Quixote na visão do novo ministro da Educação (Foto: Reprodução)
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Ricardo Vélez Rodríguez, ministro escolhido por Bolsonaro para a Educação, publicou na sexta-feira 23.11 em carta pública:

"Pretendo colocar a gestão da Educação e a elaboração de normas no contexto da preservação de valores caros à sociedade brasileira, que, na sua essência, é conservadora"

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É natural que bata na gente a curiosidade pela essência conservadora do futuro da educação, de modo mais preciso, nos textos que deveriam qualificá-lo para tão alto cargo no Brasil. Assim, vale a pena ler, no sentido de crítica mais educativa, o que o senhor culto escreveu sobre o Dom Quixote, que o ministro exibe no currículo. O texto foi consultado aqui:
http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/DomQuixote.pdf

Logo no começo, somos assaltados por esta pérola:

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"....o Cavaleiro da Triste Figura vivenciou até as últimas conseqüências o ideal de agir movido pelas próprias convicções, custasse o que custasse e sem enxergar os efeitos dos atos praticados. Dom Quixote, dizia eu, sedimentou na cultura ibérica o ideal de comportamento cavalheiresco, que age em função da honra e dos ideais de justiça, mesmo que no cumprimento da sua missão apareça como deslocado no tempo e seja avaliado pelos seus concidadãos como louco varrido".

Então paramos, meio a susto. Como assim? Como o Dom Quixote sedimentou o ideal de comportamento cavalheiresco?! Ora, de orar na teologia e da conjução, ora, toda crítica publicada até hoje mostra que o livro se escreveu como uma sátira contra os livros de cavalaria e ideais de comportamento cavalheiresco. Isso é histórico. Isso é sedimentado nas páginas do próprio livro, na graça genial de Cervantes.

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É bem verdade que lá para o fim, o futuro da educação se redime com um copia e cola no trecho:

"Valha, a respeito, a acertada observação de Martín de Riquer, no seu estudo intitulado Cervantes y el Quijote: 'O certo é que Cervantes propôs-se satirizar e parodiar os livros de cavalarias, a fim de acabar com a sua leitura, que ele considerava nociva, e que, segundo demonstra a bibliografia, conseguiu plenamente o seu propósito, pois depois de publicado o Quixote diminuem de forma extraordinária, até desaparecerem totalmente, as edições espanholas de livros deste gênero'".

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Mas das duas, uma: ou o futuro da educação não assimilou o citado, ou esqueceu de cortar o que escrevera na abertura do texto que publicou.

Isso posto, depois de passar por obviedades da biografia de Miguel de Cervantes, recebemos este monho de vento, na altura em que o futuro da educação cita um discurso de Dom Quixote sobre a liberdade, e dela retira conclsões absurdamente equivocadas. E se apoia, é claro, no conservadorismo tardio de Mario Vargas Llosa. Para a fala de Dom Quixote:

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"A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus; não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste os regalos e a abundância que tivemos neste castelo, que deixamos; pois no meio daqueles banquetes saborosos, e daquelas bebidas nevadas, parecia-me que estava metido entre as estreitezas da fome; porque os não gozava com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus; que as obrigações das recompensas, dos benefícios e mercês recebidas, são ligaduras que não deixam campear o ânimo livre. Venturoso aquele a quem o Céu deu um pedaço de pão, sem o obrigar a agradece-lo a agradece-lo a outrem que não seja o mesmo Céu!"

Para essa fala, Mário Vargas Llosa comenta o discurso de Dom Quixote, no trecho em que destaca a inspiração liberal do nosso herói:

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"Recordemos que o Quixote pronuncia esta louvação exaltada da liberdade ao partir dos domínios dos anônimos duques, onde foi tratado a corpo de rei por esse exuberante senhor do castelo, a encarnação mesma do poder. Mas, nos afagos e mimos de que foi objeto, o Engenhoso Fidalgo percebeu um invisível espartilho que ameaçava e rebaixava a sua liberdade, porque os não gozava com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus. O pressuposto desta afirmação é que o fundamento da liberdade é a propriedade privada, e que o verdadeiro gozo só é completo se, ao desfrutar, uma pessoa não vê recortada a sua capacidade de iniciativa, a sua liberdade de pensar e de agir. (...) Não pode ser mais claro: a liberdade é individual e exige um mínimo de prosperidade para ser real. Porque quem é pobre e depende da dádiva ou da caridade, nunca é totalmente livre".

É um primor de leitura enviesada. Para a ausência da liberdade que existe em quem possui a carência de bens materiais, a solução que se apresenta é a propriedade privada. Ou seja, fora dos marcos do capitalismo nenhuma liberdade humana é possível. Mas reconheçamos, semelhante conclusão já deixou de ser Miguel de Cervantes, já ficou léguas de tempo e espaço de distânica do Dom Quixote. Já é ir longe demais com a interpretação liberal.

Além da leitura liberal, e liberal aqui significa conservador de direita que não ousa dizer o próprio nome, na análise do livro o futuro da educação perde um sentido fundamental de Cervantes: o magnífico e maravilhoso humor do Dom Quixote. E tão sério e grave o erro, que o futuro da educação trata o livro, neste exemplo, ao copiar o discurso de Dom Quixote sobre a Dulcinea amada:

"Como Sancho estranhasse o fato de Dom Quixote ordenar a todos aqueles que libertava que fossem se prostrar diante da amada Dulcinea, o Cavaleiro da Triste Figura o repreendeu com as seguintes palavras: 'Que néscio e que simplório que és! (...). Pois tu não vês que tudo isso redunda em sua maior exaltação? Porque deves saber, que nestas nossas usanças de cavalaria é honra grande ter uma dama bastantes cavaleiros andantes que a sirvam, sem que os pensamentos deles se abalancem a mais do que unicamente servi-la só por ser ela quem é, sem aguardarem outro prêmio de seus muitos e bons desejos senão o ela contentar-se de os aceitar por cavaleiros seus' "

Para esse delírio do personagem máximo, o futuro da educação perde a gargalhada diante da resposta de Sancho Pança à loucura do seu senhor:

"Essa coisa já eu ouvi em sermões: que se há-de amar a Deus por si só, sem que nos mova a isso esperança de glória, nem medo de castigo".

E sabemos, muitos são os castigos do Dom Quixote na paixão pela alta musa ao longo da obra. Mas pelo contrário, a profunda ironia de Cervantes, escrita na resposta de Sancho Pança, é vista pelo futuro da educação como esta elevação cristã:

"Essa incondicional dedicação do herói à amada, foi interpretada pelo realista Sancho como uma entrega em mãos do Absoluto".

Impressionante. Menos, ou melhor, mais, muito mais. Por Deus, ó Senhor, não há leitura evangelizadora que mude o caráter do Dom Quixote, mesmo que se despreze ou não se veja o seu humor, por mais esforço que cometa o ministro futuro da educação.

Então o educativo ministro do Brasil conclui a magistral falta de discernimento sobre o Dom Quixote com esta chave de ouro:

"Não será essa lição de desprendimento heróico e de idealismo, o exemplo de que mais precisamos hoje, nós brasileiros, sumidas as nossas instituições nas baixas e putrefatas águas da corrupção generalizada e do clientelismo rasteiro, nesta hodierna etapa da cultura patrimonialista, que tudo coloca a serviço de interesses clânicos e mesquinhos?".

Desprendimento heroico, hodierna etapa, putrefatas águas, interesses clânicos.... meu Deus. O que dizer? Só isto: o futuro ministro interpreta com absoluta falta de educação o livro que o gênio de Cervantes escreveu. A essa interpretação liberal podemos aplicar o que o Dom Quixote falou, depois de uma feia queda do cavalo:

- Aqui foi Troia ! Aqui a minha desgraça me tirou as glórias que eu alcançara.

Note que a frase acima é uma paráfrase, viu, ministro?

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