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Diogo de Andrade

Professor das redes municipais do Rio de Janeiro e Duque de Caxias, formado em Letras pela UFRJ

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O entrelugar pai-professor

A distância, essa certamente sem acento grave, me faz refletir sobre a gravidade da ausência e sobre a gravidez que trará a minha Alice, pena que no país das maluquices

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"Pai, por que tenho que estudar, se não tá tendo aula?”. Essa foi a pergunta que Messias mais me fez nos últimos meses, desde que as aulas foram suspensas. Já o Moisés, meu mais velho, finge que faz tudo, mas não resiste a uma incerta que dou em seu celular. “Está estudando ou no zap?”. Ele se enrola todo, mas já era. Vi que ele estava on-line. Sim, porque eu estava on-line lendo as orientações da direção sobre como seria o próximo mês. Melhor. Direção não; direções. Uma no Rio, duas em Duque de Caxias: dou aula em duas redes municipais diferentes.  São 52 KM de distância entre as escolas, trajeto que faço 3 vezes na semana. Nos outros dois, fico só no município do Rio, onde minha carga é maior – 40 horas semanais.

No momento atual, que só no futuro saberemos dizer se foi o início, o meio ou o fim da pandemia, meus papéis de pai e professor deixaram de se alternar. Houve uma fusão desses dois aspectos, ao ponto de eu brigar com meus filhos no momento em que estavam como meus alunos e tratá-los como filhos enquanto lhes dava aula. Não sei se é a mesma coisa ou o inverso. Isso ainda é confuso na minha mente. Embora eles tenham 14 e 12 anos, passaram a ser meus filhos em 2017, quando resolvemos adotá-los. São irmãos consanguíneos, uma longa história para outro momento. Neste, o que sei é que esse duplo papel ficou mais complicado, porque minha esposa continuava trabalhando presencialmente. E num hospital, o Federal da Lagoa (HFL), que recebeu pacientes com COVID 19.

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Um receio contínuo me atravessava. Todos os dias, ela no transporte público, todos os dias, ela no hospital e depois em casa. Cansada. E grávida. Sim, estamos esperando a Alice, que chega no início de outubro. Jeicy é terceirizada e, diferente das grávidas concursadas do Hospital da Lagoa, não teve afastamento por pertencer a um grupo de risco. Talvez porque uma grávida servidora seja merecedora de mais cuidado que uma grávida não servidora, ainda que trabalhem no mesmo espaço.

Aulas para meus mais de 400 alunos. Aulas para meus dois filhos-alunos. Casa para arrumar. Comida a fazer. E, de repente, a febre, a perda de paladar e a falta de ar. Ansiedade e pânico no mesmo pacote. Sim, estava com COVID.

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Peguei da minha esposa? Peguei quando fui ao mercado? À padaria? E se ela estivesse também? Tivemos contato normal até a hora da febre. Dava o beijo do “vai com Deus” todos os dias quando ela saía de casa. Era muito provável que ela também estivesse. Pelo menos, ela será afastada do trabalho e também ficará em isolamento. Correto? Errado. “Só se você tiver algum sintoma”, disse-lhe o chefe.

Quatorze dias dentro de um quarto com banheiro. Recebia a comida pela fresta da porta. Lavava o prato e o talher na pia da banheiro antes de devolver. Fui ficando paranoico. “Hoje o número de óbitos chegou a 900. Hoje chegou a 1000. 1200. 1350. Mil e eu? Será que viraria número? A gripezinha estava mexendo comigo. Queria minha mãe. Mas, por ser do grupo de risco, ela estava isolada na Região dos Lagos com meu pai. Melhor não saberem para não ficarem loucos de preocupação. Como eu. Preocupado, mas agora menos ocupado. Não exerci o magistério a distância enquanto estava em isolamento. Mas continuei sendo pai-professor. Pra isso, existe chamada de vídeo.

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Vamos estudar! Ah, pai... O senhor está doente! Eu sim, vocês não! Entrem no aplicativo e vejam o que tem pra fazer. Depois tira foto do dever e me manda. Pai... Não começa! O senhor não é meu professor! Por que me passa trabalho? Ler um livro é tão difícil assim? Não gosto de ler! Eu não gosto de tanta coisa e tenho que fazer... Vai ler mesmo sem gostar!

Sete dias se passaram. Jeicy no seu trabalho. Eu sem paciência pra TV. Chega de ver jornal!

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14 dias se passaram. Mas a falta de ar persistia. Ar. Invisível e tão necessário. Vírus. Invisível e tão maléfico. A invisibilidade da dor às vezes dói mais que a dor. Mas eu estava no meu ap. Com banheiro exclusivo, no meu quarto. Com TV e internet. E meus alunos? Na favela. Em um ou dois cômodos, apertados, dividindo o celular com internet pra tentar estudar. Ou não. “É muito difícil entrar no aplicativo”. “Só tenho crédito pra rede social”. “Tenho que olhar minha irmã.” A dor de sempre é a dor de agora. Piorada pelo isolamento. Pela fome. Pela notícia da corrupção do governo do estado. Piorada pela notícia da morte de Georg Floyd. Pelo assassinato de João Pedro. Pelo prefeito que suspende os poucos cartões alimentação porque “tinha mãe comprando cachaça”. Que mundo surreal. Ao menos, acabou meu isolamento, né, doutora? Ledo engano. Mais 7 dias. Não se sabe se você ainda pode transmitir. Mas eu vi que não tenho mais carga viral pra transmitir depois de 14 dias. Viu onde? Na TV, no google. Diogo, ninguém sabe de nada. Melhor ter esse cuidado a mais por conta da sua esposa. Argumento certeiro. Mais 7 dias. Pai a distância. Professor a distância. Marido a distância. Filho a distância. Até “a distância” é complicado. Ocorre ou não crase? Nem os gramáticos se decidem. Por que eu tenho que decidir?

A distância, essa certamente sem acento grave, me faz refletir sobre a gravidade da ausência e sobre a gravidez que trará a minha Alice, pena que no país das maluquices. Mas também outras presenças. Do ar, da vida, do amor e da esperança, essa teimosa que nos faz ver cor no futuro de um presente distópico.

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