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Judith Butler

Professora de filosofia na University of California, Berkeley. Autora, entre outros livros de Vida precária: os poderes do luto e da violência

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O futuro da pandemia

Apesar da afirmação da interdependência, torna-se patente que o mundo compartilhado não é igualmente partilhado

Índios ianomamis com máscaras de proteção facial em destacamento militar em Alto Alegre, Rondônia 01/07/2020 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)
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Por Judith Butler

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Independentemente de como assimilamos esta pandemia, nós a compreendemos como global; ela deixa claro o fato de que estamos implicados em um mundo compartilhado. A capacidade de criaturas humanas vivas de afetar umas às outras é, por vezes, uma questão de vida ou morte. Como são muitos os recursos partilhados de forma desigual, e muitos também são aqueles que possuem apenas uma pequena ou extinta fração do mundo, não podemos reconhecer a pandemia como global sem enfrentar tais desigualdades.

Algumas pessoas trabalham para o mundo comum, fazem-no girar, mas são, por tal razão, parte dele. Podem lhes faltar as propriedades ou os documentos. Elas podem ser marginalizadas pelo racismo ou até mesmo ser desprezadas como lixo – aquelas que são pobres, negras, com dívidas impagáveis que bloqueiam o sentimento de um futuro aberto.

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O mundo compartilhado não é igualmente partilhado. O filósofo francês Jacques Rancière se refere à “parte dos sem parte” – aqueles cuja participação no comum não é possível, nunca foi, ou não mais será. Afinal, não se pode possuir parcelas apenas de empresas e recursos, mas também de uma noção de comum, uma sensação de pertencer igualitariamente ao mundo, uma confiança de que ele está organizado para assegurar o florescimento de todos.

A pandemia iluminou e intensificou desigualdades raciais e econômicas ao mesmo tempo que aguçou os sentidos globais de nossas obrigações com os outros e com o planeta. Há um movimento com direção mundial, baseado em uma nova noção de mortalidade e interdependência. A experiência da finitude está associada a uma aguçada percepção das desigualdades: quem morre prematuramente e por quê? E para quem estão ausentes a infraestrutura ou a promessa social de continuidade da vida?

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Essa percepção da interdependência do mundo, fortalecida por uma crise imunológica comum, desafia a concepção de nós mesmos como indivíduos isolados e encapsulados em corpos discretos, sujeitos a fronteiras estabelecidas. Quem negaria, nesta altura, que ser um corpo significa estar vinculado a outras criaturas vivas, às superfícies e aos elementos, incluindo o ar que pertence a ninguém e a todos?

Nestes tempos pandêmicos, ar, água, teto, roupas e o acesso à saúde são focos de angústia coletiva. Entretanto, todos eles já estavam ameaçados pelas mudanças climáticas. O fato de alguém viver ou não uma vida vivível não é uma mera questão existencial privada, mas uma questão econômica urgente, incitada pelas consequências de vida ou morte da desigualdade social: existem serviços de saúde, abrigos e água limpa suficientes para todos aqueles que têm direito a uma parte igual deste mundo? A questão se torna ainda mais urgente devido às condições de precariedade econômica agravadas pela pandemia – que expõe, também, a catástrofe climática em andamento como a ameaça à vida vivível que ela é.

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Pandemia é, etimologicamente, pandemos: todas as pessoas ou, mais precisamente, as pessoas em todos os lugares, ou algo que se espalha sobre ou através das pessoas. O “demos” são todos, a despeito das barreiras legais que tentam separá-los. Uma pandemia, então, vincula todas as pessoas por meio dos potenciais de infecção e recuperação, sofrimento e esperança, imunidade e fatalidade. Nenhuma barreira impede a circulação do vírus enquanto os humanos circularem; nenhuma categoria social garante imunidade absoluta para todos aqueles que inclui.

“O político, em nosso tempo, deve partir do imperativo de reconstruir o mundo em comum”, argumenta o filósofo camaronês Achille Mbembe. Se consideramos a espoliação dos recursos planetários para o lucro empresarial, a privatização e a própria colonização como um projeto ou um empreendimento planetário, então faz sentido conceber um movimento que não nos envie de volta aos nossos egos e identidades, nossas vidas isoladas.

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Tal movimento será, para Mbembe, “uma descolonização [que] é, por definição, um empreendimento planetário, uma abertura radical do e para o mundo, uma respiração profunda do mundo em oposição ao isolamento”. A oposição planetária à extração e ao racismo sistêmico deve, portanto, nos trazer de volta ao planeta, ou deixar que ele se torne, como que pela primeira vez, um lugar para uma “respiração profunda” – um desejo que todos hoje conhecemos.

No entanto, um mundo habitável para os humanos depende de um planeta florescente onde os humanos não estã no centro. A oposição às toxinas ambientais não acontece apenas para que possamos viver e respirar sem ter medo de nos envenenar mas, também, porque a água e o ar devem ter vidas que não estejam centradas na nossa.

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Conforme desmontamos as formas rígidas de individualidade nestes tempos interconectados, podemos imaginar o papel menor que os mundos humanos devem desempenhar neste planeta Terra de cuja regeneração tanto dependemos – e que, por sua vez, depende de nosso menor e mais consciente papel.

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente na revista TIME.

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