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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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O professor ladrão

A educação sempre vale a pena, não importa onde nem como, nas melhores e piores circunstâncias. Para o recente 15 de outubro, Dia do Professor, lembro um caso que revolta e deixa uma trêmula esperança

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A educação sempre vale a pena, não importa onde nem como, nas melhores e piores circunstâncias. Para o recente 15 de outubro, Dia do Professor, lembro um caso que revolta e deixa uma trêmula esperança. 

O “professor ladrão” do título é uma referência ao pesadelo de um mestre, esclareço logo. Daí que é necessário falar do que não gostaríamos. Parece mesmo que não temos um minuto só de trégua, de paz, ainda que falsa. É o caso desta notícia, de 2014: 

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“Acusado de assalto, professor de História é obrigado a dar aula para provar inocência. Espancado por moradores, André Luiz Ribeiro precisou dar aula sobre Revolução Francesa e ainda foi preso por dois dias. Confundido com um ladrão…”

Primeira pausa. Se fosse um ladrão estaria certo sofrer o que o professor sofreu? Mas continuando:

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“…um professor de História foi espancado por moradores da periferia de São Paulo e só conseguiu se livrar do linchamento quando, segundo ele, foi obrigado a dar uma aula sobre Revolução Francesa. Mesmo assim, André Luiz Ribeiro, 27 anos, foi levado para a delegacia, onde ficou por dois dias, já que o dono do bar assaltado confirmou em depoimento que ele seria o ladrão.

O professor contou que quando foi socorrido por Corpo de Bombeiros, teve de ‘dar uma aula’ sobre a Revolução Francesa para provar sua inocência. Os bombeiros declararam que ‘informações são improcedentes’ e que não houve ‘desrespeito ou deboche’ na exigência. O professor. André conta que estava correndo no bairro Balneário São José, em São Paulo, quando um bar foi assaltado.

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— Eu corro dez quilômetros todos os dias, estava de fone de ouvido, sem identificação porque moro por perto, e fui confundido com um dos três assaltantes. O dono do bar e o filho dele me acorrentaram. Umas 20 pessoas me cercaram e começaram a me bater. Acorrentaram meus braços e pernas e me colocaram de barriga para baixo na rua — conta o professor.

Segundo ele, um dos bombeiros que o socorreu teria dito: ‘Se você é professor de História, então dá uma aula sobre Revolução Francesa’”

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Pausa para a notícia: notem que já houve, seguramente, deboche e abuso. O bombeiro pensou em pedir o impossível, pensou em se divertir com o homem espancado, ou seja, em livre leitura do seu ato: “se você é professor, ô ladrão, dê uma aula de história, e sobre a Revolução Francesa. Quero ver. Vamos”.

Mas para desgraça da piada, o homem ferido era mesmo professor.

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Continuando:

“— Falei que a França era o local onde o antigo regime manifestava maior força, e que a burguesia comandou uma revolta junto com as causas populares, e que havia fases da revolução”

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Mas que poder de síntese, meus amigos! Que lucidez impressionante no fundo da dor. Quantos de nós conseguiríamos ter essa luz no meio da mais funda selva, quando tudo parecia perdido?

Continuemos com o mestre humilhado:

“Falei por uns três minutos e perguntei se já estava bom.

O professor de história também diz que foram os bombeiros que salvaram sua vida, pois enquanto ele dava a aula para provar que era professor, ouviu o proprietário do bar dizer que ia buscar um facão. Em seguida, a Polícia Militar chegou no local, o levou para o pronto-socorro da região. Depois, foi encaminhado à delegacia, onde ficou preso.

— O proprietário do bar assaltado, Djalma dos Santos, 70 anos, negou que tenha espancado o professor. Questionado se tinha certeza de que Ribeiro era um dos assaltantes, ele não confirmou.

— A população foi que acorrentou, que bateu, eu não fiz nada. O que eu tinha que falar já falei na delegacia. Não adianta nada ficar perguntando, não vou retirar o que disse. Eu gritei que era ladrão e a população da rua foi atrás dele. Se ele não devia nada, vai dar uma mancada dessas de estar correndo no meio dos bandidos na hora do assalto? — afirmou o proprietário do bar”.

Quanto cinismo do dono do bar. Ele não bateu, apenas atirou um homem às feras. “Podem matar”, foi a sua atitude.

Continuando a notícia do crime:

“A Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou que o delegado André Antiqueira, titular do 101º DP, ‘se coloca à disposição para ouvir em depoimento quem tenha novas informações para acrescentar à investigação’, já que os criminosos que participaram do crime ainda não foram presos.

— O professor foi preso em flagrante em cumprimento do artigo 302 do Código Penal, já que a vitima o reconheceu como um dos participantes do roubo ao estabelecimento comercial em duas oportunidades. A Justiça concedeu liberdade provisória ao acusado — diz nota da SSP”.

Para mim, o gênio de Kafka não escreveria melhor que essa resposta burocrática do delegado de polícia. Um inocente foi enquadrado no artigo 302 do código penal, e a justiça concedeu liberdade provisória ao inocente criminoso enquadrado. Para a polícia, o problema legal foi resolvido, pelo visto. Mas a justiça humana é outra história, não entra no boletim de ocorrência. Voltemos ao mestre de escola pública:

“Só depois de explicar sobre a ascensão da burguesia é que me levaram ao hospital.

Foi algo surreal. Só acreditamos quando chega próximo de nós. Aí você vê que é muito real mesmo, esse ódio das pessoas. Essa brutalidade do ser humano.

Eu estou bem melhor, mas a ferida na alma, a inocência, está perdida.”

E agora, merece destaque o depoimento corrido do mestre de história quase morto:

“Quando vi, as pessoas olhavam na minha direção, provavelmente porque foi a direção que os ladrões tomaram. Eu estava indo no sentido contrário. Com fone de ouvido. Nem achei que tinha acontecido um roubo. Nem sabia que era comigo.

Até onde eu lembro, eu ouvia ‘Lion Man’, do Criolo. Sou fã, gosto para caramba. O show dele já fui, é louco. Pelo fato de ele retratar as favelas, a realidade aqui. Também eu ouvi Facção Central, de rap, que tem uma causa social muito forte em pauta.

Aí eu vi as pessoas se afastando bruscamente. Foi quando eu vi um fusca vermelho para me atropelar, vindo com muita velocidade. Pararam quase em cima de mim. Aí desceram do carro o dono do bar e o filho. E começaram a me bater.

Eu falava em todo momento que eu era inocente, que era professor. Eu não tinha documento nenhum porque estava correndo, todo mundo me conhece ali perto. Mas já me bateram, me jogaram no chão.

Os dois começaram. Só que veio a multidão. Foi de 15 a 30 pessoas que me bateram. Nem me perguntaram, nem olharam para os meus bolsos para ver se eu tinha alguma coisa. Eu não ia fugir, já pus as mãos para cima quando se aproximaram, mas tomei um soco na cara.

Ainda estava no chão, mas eles não acreditavam em mim. Eu disse que era professor, que estava ali por acaso. Aí um dos bombeiros falou para dar uma aula sobre Revolução Francesa. Foi o que me salvou.

Eu estava arregaçado, mas consciente. O raciocínio fica difícil, porque você fica em choque. Eu falei da ascensão burguesa ao primeiro escalão, que tinha poder econômico, mas não poder político, e de como a revolução mudou a forma como vivemos hoje.

Achei mesmo muito irônico esse ter sido o tema que ele perguntou, ali, naquele momento. Liberdade, igualdade, fraternidade. Falei sobre a queda da Bastilha. É um assunto que eu dou para 7ª série. Estava fresco na minha cabeça. Mas, mesmo assim, eu leio muito. Eu tenho conhecimento mínimo acerca da História.

Foi algo surreal. Só acreditamos quando chega próximo de nós. Aí você vê que é muito real mesmo, esse ódio das pessoas. Essa brutalidade do ser humano.

Nunca imaginei que eu ia ser preso um dia. Mas hoje eu tenho mais essa  ferramenta para falar para os meus alunos”.

É uma notícia, ao mesmo tempo, triste, que comove, e revoltante. 

Dependendo do ângulo sob o qual a gente olha, pode-se dizer que é uma vitória do conhecimento sobre a barbárie (o professor, acorrentado, quase morto, deu uma aula que o salvou), ou pode ser dito também que é uma vitória parcial da barbárie sobre o conhecimento, porque espancou e quis matar um homem por aparências frágeis, sem consistência, em franca e bárbara injustiça.

Hoje, revendo o acontecimento de 2014, concluo que o conhecimento salvou um mestre de morrer entre os bárbaros. Mas que prova infame. 

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