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Paulo Moreira Leite

Colunista e comentarista na TV 247

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Os abutres e o tango da soberania argentina

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Marcelo Zero (*)
Com todo esse imbróglio envolvendo a Argentina e os fundos abutres, muita gente deve estar se perguntando: como pode um juizinho de primeira instância do estado de Nova Iorque colocar de joelhos um país soberano?

A resposta a essa pergunta é enganadoramente simples: não foi o juiz Thomas Griesa que colocou a Argentina de joelhos; foi a Argentina que se colocou de joelhos perante o juiz.
Esse ato vexatório de genuflexão não foi cometido, no entanto, pelo governo Kirchner. Tudo começou na ditadura militar, mais precisamente em 20 de abril de 1976, quando o governo argentino sancionou a Ley 21.305. Essa lei tinha um só artigo, que modificava o Código Procesal Civil e Comercial de la Nacíon, de modo a permitir a retirada da competência da justiça argentina, em assuntos de natureza patrimonial, “a favor de juízes e árbitros estrangeiros”.

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Tratava-se, é claro, de uma renúncia à soberania jurídica do país. A junta militar queria emitir papéis da dívida para se financiar, mas estava encontrando dificuldades para atrair investidores, que relutavam em comprar papéis submetidos à justiça argentina tutelada pelos generais. A “solução” da junta militar foi dar “maior segurança jurídica aos investidores”, permitindo-lhes submeter qualquer querela jurídica a juízes estrangeiros.

[adrotate banner="4"]Posteriormente, já no governo Menem, a Argentina aprofundou ainda mais essa renúncia a sua soberania jurídica, ao assinar 54 acordos bilaterais de promoção e proteção de investimentos. Esses acordos permitem aos investidores estrangeiros na Argentina submeter qualquer disputa jurídica a uma arbitragem internacional, passando ao largo de tribunais nacionais. Diga-se de passagem, na época de FHC, o Brasil também firmou 17 acordos desse tipo, que só não foram promulgados porque a oposição os barrou no Congresso.

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Mas o fato concreto é que, desde aquelas jurássicas eras, a Argentina emite os seus papéis da dívida soberana, ou boa parte deles, em Nova Iorque, submetendo-os, ipso facto, às leis e cortes norte-americanas, federais e estaduais. O Banco encarregado de fazer esse serviço é o Bank of New York Mellon.

É isso que permite que Thomas Griesa decida monocraticamente sobre o destino da Argentina e, por consequência, sobre o futuro de todas as, por vezes, imprescindíveis reestruturações das dívidas soberanas, levando inquietação a todo o mercado financeiro internacional.
É isso que permite também aos fundos abutres traçar estratégias jurídicas audaciosas para ter lucros extraordinários.

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Num primeiro momento, tais fundos, principalmente o NML de Paul Singer, situado muito apropriadamente nas Ilhas Cayman, tentaram cobrar da Argentina pedindo o sequestro de bens no exterior. Tentaram sequestrar o avião presidencial e mesmo depósitos da Argentina no Federal Reserve em Nova Iorque. Conseguiram até aprisionar, por 10 semanas, a fragata argentina Libertad, que estava fazendo uma escala em Gana. Essa estratégia esbarrou, no entanto, em leis internacionais que protegem ativos soberanos no exterior.

Desse modo, os fundos abutres resolveram mudar de estratégia. Agora, a estratégia é embarrar a própria reestruturação da dívida. Essa estratégia audaciosa vem dando certo devido, em boa parte, a outro erro argentino. É que, nas renegociações feitas em 2005 e 2010, a Argentina teve o cuidado de incluir a cláusula pari passu (que assegura tratamento igual a todos os credores), mas não incluiu uma cláusula de ação coletiva forçando a inclusão de todos os credores na renegociação.

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Agora, o juiz Griesa diz que a Argentina, que se comprometeu a tratar todos os credores com igualdade, tem de pagar a todos os credores, mesmo aqueles que não aderiram à renegociação. Ou paga a todos ou não paga a nenhum. Fica decretada, assim, a morte jurídica da reestruturação da dívida. A Argentina está em default não porque não possa ou não queira pagar. Está em default porque a justiça norte-americana não a deixa pagar a dívida renegociada.

Paradoxalmente, é justamente o êxito da reestruturação que torna a estratégia abutre viável. Com essa reestruturação, a Argentina reduziu a sua dívida externa de 150% do PIB, em 2002, pra 8,3% do PIB, em 2013, e conseguiu se recuperar economicamente A grande maioria dos credores, que aceitaram a reestruturação (93%), também se beneficiou. Com a recuperação do país, houve um boom de papéis argentinos, que tiveram seu valor de face multiplicado por quatro. Além disso, a Argentina vem pagando religiosamente os dividendos e os juros aos credores que aceitaram a reestruturação. Assim, os credores que aceitaram a renegociação perderam no curto prazo para ganhar mais no longo prazo. Isso cria uma pressão enorme para que a Argentina continue a pagar seus compromissos com essa grande maioria de credores.

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A estratégia jurídica dos abutres conduziu ao arriscado dilema do tudo ou nada. Se a Argentina pagar aos abutres o que eles querem, o valor de face original dos papéis, sem o desconto da renegociação, mais todos os juros e dividendos, os outros 93% dos credores provavelmente vão exigir, com base na cláusula de tratamento igualitário, a mesma coisa do governo argentino, o que poderá gerar ações da ordem de US$ 20 bilhões dólares. Por outro lado, se a Argentina não pagar os abutres, não poderá pagar também os outros credores, o que complicará sua situação no mercado financeiro internacional, justamente no momento em que começa a ter grande necessidade de captar dinheiro no exterior.

[adrotate banner="4"]Pode-se argumentar, é claro, que essa é uma estratégia arriscada também para os fundos abutres, pois o default técnico-jurídico pode jogar por terra o valor atual dos bônus argentinos, como aconteceu em 2002. É verdade. Mas, por trás dessa arriscada estratégia jurídica, há também um frio cálculo político. Os fundos abutres estão apostando alto na derrota de Kirchner nas próximas eleições e em sua substituição por um governo mais “sensível aos interesses dos investidores”, que se disporia a pagar os lucros estratosféricos pretendidos.

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O esquema é conhecido: cria-se uma crise para prejudicar um governo pouco receptivo aos interesses dos especuladores, para depois lucrar muito com um governo “amigo das finanças”. A renúncia da soberania jurídica funciona melhor quando há um comprometimento da soberania política.

O Task Force Argentina, grupo de lobby que defende os interesses dos abutres, gasta mais de US$ 7 milhões por ano somente para apoiar políticos comprometidos com sua agenda. Financia também organizações não governamentais e a produção de artigos, “análises” e “estudos”. A bem da verdade, é um investimento baixo para o lucro almejado. Se tiverem êxito, os abutres poderão vender ativos comprados por US$ 49 milhões por 1,3 bilhão. Tudo isso, é óbvio, a expensas do bem-estar da população argentina, que teria de pagar pelo “ajuste” econômico necessário para financiar a farra dos especuladores.

Porém, não são somente os abutres que fazem política. Toda a banca faz. Os especuladores de todas as plumagens sempre arranjam uma maneira de lucrar muito com as crises, reais ou fabricadas.

Há inúmeras task forces por aí, ameaçando a soberania jurídica e política de muitos países, inclusive o Brasil. Trata-se de algo ameaçador e muito ruim para os interesses nacionais.
O pior, contudo, é que muita gente por aqui continua a achar que as “análises” do Santander, do Empirucus, et caterva, são “técnicas” e muito apropriadas.
Bom, se é assim, melhor fazer como dizia Manuel Bandeira: cantar um tango argentino.

(*) Marcelo Zero é formado em Ciências Sociais pela Unb e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores

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