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Tarso Genro

Advogado, político filiado ao Partido dos Trabalhadores, foi governador do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil

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Os camponeses da Sicília contra a verdade fascista ( Globo recebe o troco)

A “Guerra dos Santos”, se fosse escrita hoje, poderia ser considerada uma parábola do que o Governo Bolsonaro vem aprontando para a Rede Globo e o seu sistema nacional de comunicação.

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Na pequena comuna siciliana do conto “Guerra dos Santos”, de Giovanni Verga, a procissão em homenagem a São Roque avançava linda, musical, dourada, com um grande cortejo de devotos, quando
então caiu sobre ela uma avalanche de “tacos e porretes”. Era “como peras maduras” que caiam “nas próprias barbas de São Roque” -diz Giovanni Verga- acompanhadas dos gritos de “Viva São Pascual”, proferidos pelos devotos do também egrégio Santo, cultuado no bairro do mesmo nome. O conto trata deste duro dissenso dentro da mesma religião, pelo qual crentes que  veneram Santos diferentes, pelos mistérios da fé se impregnam da fé de forma conflitante.

A rica preparação da procissão de São Roque que “parecia uma nuvem de espuma de ouro”, arrastando uma serpente de beleza e luz, fez despertar, na impaciência dos devotos de São Pascual, uma inveja bruta, como se tivessem que reagir contra quem estaria “cuspindo na sua própria casa”. A confusão foi generalizada e os santos -já casmurros- voltaram às Igrejas deixando a festa, que então termina “como uma comédia de fantoches.”

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Penso que as imagens dos santos concentram uma parte da dor do mundo, no pensamento dominante dos católicos da igreja Romana e a devoção às suas imagens é uma forma de comunhão com o seu sofrimento em vida. O culto de duas pessoas a um mesmo Santo gera, por esta escolha comum, uma afetividade legítima e “horizontal” que se reproduz no contingente de devotos, que promovem -desta forma- algum tipo de vínculo moral, por “fora” da materialidade do mundo.

As religiões pós-modernas do evangelismo materialista, que negam as imagens, por seu turno, substituem as estátuas santificadas pelo fetichismo do dinheiro. Estimulam com isso, de forma direta, uma solidariedade materialista “vertical”. Com quem? Com os estelionatários da fé, que extraem o dízimo dos crentes -um “imposto” sobre a fé- que é subtraído das suas parcas economias para chegarem, verticalmente, aos supostos “santos” de carne e osso: os donos das Igrejas e gerentes do culto à própria riqueza.

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São Roque e São Pascual suportaram de forma diferente as dores do mundo, com a devoção expandida pelo cristianismo medieval. São Roque (1295-1327), protetor contra a peste, amigo dos inválidos e santo dos cirurgiões, correspondeu em vida ao que é hoje um “assistente social”, doado ao sofrimento alheio. São Pascoal (1540-1592), “místico e contemplativo” -de família camponesa pobre- aprendeu a ler por esforço próprio e tornou-se um intelectual da Igreja. Foi Padroeiro de Congressos e Associações Eucarísticas. Não é de graça que ambos estão presentes no conto “Guerra dos Santos”, aqui relatado.

Suportar as dores do mundo é um estado geral  da humanidade desde que o homem tem consciência de que é uma espécie que “cogita”. Numa carta às irmãs Elisa e Tania, em 13 de julho de 1946 -à beira do Lago Leman em Lausanne- Clarice Lispector escrevia sobre a sensação de paz colhida na beleza e na felicidade. Seu rito é, ao mesmo tempo, de “temor, susto e apreensão” que emerge -diz Clarice- “de minha natureza, (de) carregar nos ombros a culpa do mundo, (pois) se todos sentissem isso talvez saísse um novo mundo”: “uma pessoa só, pode apenas sucumbir”.

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Esta felicidade perturbada da alma nos atravessa a todos, em algum momento da vida. O pertencer ao coletivo humano é indefinido nos seus limites, mas é real, -com as suas tragédias e alegrias- como particularidade especificamente humana. Um animal, por mais inteligente que seja, não se “pré-ocupa” com a história, nem com os outros animais, mesmo os da sua espécie. Ele vive apenas  impulsionado pelo instinto e se  é capaz de retribuir o carinho não pensa em organizar um “conceito” sobre o carinho: um animal não cogita sobre o destino ou teoriza sobre a violência.

Por isso mesmo o culto da morte,  fundado na admiração necrófila (que substitui a defesa da vida), é também um projeto especifico dos seres humanos. Vem de mentes infelizes que obtém prazer recusando que muitos ombros -juntos- podem “suportar” a culpa do mundo, para mudar o mundo. A “Santa” Inquisição é um exemplo desta recusa, pois racionalizou a santidade -trouxe-a para a terra- para chancelar a expiação e a culpa pela “morte dos mortais”, com a glória e o terror.

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Na modernidade madura a violência racional e o culto da morte encontraram seu apogeu nos Campos de Hitler e no Holocausto. Foi quando mostraram que se o diabo existe ele é a fantasia radical do mal, que pode ser extraído do inconsciente e transformado em política de Estado.

Esta violência da  razão degradada e o culto da morte transitam hoje, na política das democracias tardias
como no Brasil, através de um singular e instável sistema de alianças. Este sistema -hoje em crise de moralidade e de ausência de legitimidade- inclui partidos sem tradição, religiões do dinheiro e grupos milicianos. Mas não só: a maioria da mídia oligopólica, os “lumpens” recalcados da academia, -que acreditam que a terra pode ser plana- os setores da grande burguesia rentista em busca das reformas e renda fácil, os setores do aparato estatal instituído, todos aceitam esta anormalidade perversa.

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Não pude deixar de pensar, a partir da reflexão de Clarice sobre os ombros e o mundo, que também foi de Drummond (“teus ombros suportam o mundo”), de Manuel Bandeira (“Espanha no meu e no teu coração!”), de Moacyr Félix (“um Homem morto na cruz, (com a) luz que a sua morte expande pontuda como uma espada”) -não pude deixar de pensar- em Giovanni Verga. O siciliano universal que deu seus ombros ao mundo e fez dos seus personagens não “entes literários”, mas homens e mulheres reais -de carne e osso- dentro da História elevada à condição de melhor ficção literária.

Os tormentos, a rotina, a grandeza humana e a paixão religiosa destes esquecidos -suas venerações e dissensos- estão ali no seu conto magistral, que trata da inveja mal processada, da peste, da fé não respeitada pela imoderação e da rivalidade comunitária. A “Guerra dos Santos”, se fosse escrita hoje, poderia ser considerada uma parábola do que o Governo Bolsonaro vem aprontando para a Rede Globo e o seu sistema nacional de comunicação.

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O Governo voltou as suas baterias para substituir o Sistema Globo como partido dirigente do liberal-rentismo no Brasil, para colocar no seu lugar um grupo dirigente ainda mais desumano e mistificador. Trata-se de acabar com os brilhos dourados da Procissão de São Roque -da Globo- e colocar no seu lugar a violência dos adeptos de São Pascual, do conto de Verga. São os atormentados pela fé radical, que se expressa na sua literatura como “assalto” à Procissão da mesma religião. Na nossa vida política, todavia, revela-se de forma criadora como assalto ao “poder de comunicar” de forma totalitária -o que quiser- pela asfixia econômica da grande imprensa tradicional.

A liberdade de circulação da opinião, na hipótese de Bolsonaro vencer a Globo, ficaria ainda mais restrita do que está e promoveria o proto-fascismo do Governo -não dominante no consórcio neoliberal que domina o país- ao primeiro plano da política latino-americana. O fascismo expandiria os seus efeitos para todo o continente, chancelando portanto -partir do Estado- a violência miliciana e a censura fascista.

A rica Procissão de São Roque se assemelha à trajetória política que a Globo e seus aliados na imprensa e nos partidos, prepararam para o golpismo, cuja trajetória pode terminar em desastre. Desta feita, todavia, também para eles, que continuarão fortes e poderosos num país despedaçado pelo ódio, mas sem o controle da formação da opinião.

A ideia de Fernando Henrique e da Globo, de que Bolsonaro seria “controlado” por seus aliados nos partidos tradicionais torna-se, assim, cada vez mais improvável. A luminosa e colorida Procissão de São Roque dos Marinhos não contava que os adeptos do São Pascoal pós-moderno,  chegassem a tanto. Não supunham que, crédulos nos seus anti-valores -sexistas, racistas, xenófobos e necrófilos- eles ousariam
confrontar os seus principais criadores.

Hoje, estes criadores do golpismo e viabilizadores da política da morte em curso, se equilibram entre uma denúncia moderada da liquidação da República -promovida com seu apoio pelo grupo de Curitiba-  e uma nova denúncia requentada contra Lula. Tentar justificar que o problema do país era realmente a corrupção, que hoje é maior do que em qualquer tempo, já é uma fraude demasiadamente explícita.

Sua saída decente seria ajudar a nação republicana a derrubar Bolsonaro, através dos meios legais e constitucionais pelo Congresso. Isso não o farão, pois já demonstraram -na derrubada de Dilma- que o seu apreço à Constituição e ao país é bem menor do que a sua tolerância com o fascismo. Lutando para que a esquerda se una e una-se ao centro democrático, para aproveitar as lições da história recente (mostrando que temos condições de concertar o país e governar com firmeza e sem ódio) vamos, por enquanto, dizendo: “Valham-nos os verdadeiros São Roque e São Pascual”, extraídos da consciência de luta dos pobres camponeses da Sicília remota.


 

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