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Emir Sader

Colunista do 247, Emir Sader é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros

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Os livros de Alvaro

"Não se preocupe, Álvaro. Nós vamos reconstruir sua biblioteca, livro por livro, no México, na Argentina, no Brasil, na França, em qualquer lugar", escreve o sociólogo Emir Sader sobre o vice-presidente da Bolívia, Alvaro García Linera, forçado a renunciar junto com o presidente Evo Morales no golpe de Estado no último domingo (10). "Evo e você voltarão nos braços do povo, como Lula recuperou sua liberdade nos braços do povo"

Alvaro García Linera e Evo Morales
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Eu conheci Alvaro em um seminário no México e imediatamente estabeleci uma empatia que só cresceu ao longo dos anos. Quando organizei a Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe, solicitei a ele  o verbete da Bolívia. Ele enviou um texto formidável. (Estou atualizando a Enciclopédia, vou pedir para ele atualizá-lo.) Lembro que, com o pagamento recebido, Alvaro comprou seu primeiro computador.

Sempre mantivemos contato, eu o segui quando Evo o convidou para ser seu vice-presidente. Estive na primeira campanha eleitoral, em 2005, viajei pela Bolívia com ele. Lembro que no sábado anterior às eleições fomos a Santa Cruz de la Sierra. Já no aeroporto, ele foi abordado por empresários, com a certeza de que ele se tornaria presidente, tentando fazer contato com ele. No caminho de volta, não havia vôos comerciais, porque não havia transporte público entre as cidades no dia da votação. Um empresário brasileiro emprestou seu avião, um produtor de soja, Álvaro aceitou, mas desde que o mesmo empresário viajasse conosco, para evitar qualquer armadilha.

Estávamos juntos no dia das eleições, após a contagem dos votos. Lembro-me de Alvaro ligando para Evo, tentando convencê-lo a ir a La Paz para fazer uma declaração de presidente eleito. Evo queria estar com seu povo em Cochabamba, mas ele concordou em ir, fez uma declaração e voltou para seu povo e seu mundo.

Lembro que saímos com Álvaro para El Alto, as pessoas queriam ouvi-lo, Álvaro dirigia, feliz, a mais de 100 quilômetros por hora. Ele foi recebido como um grande líder e discursou para o povo de El Alto.

Voltei para a posse de Evo e Álvaro. De manhã tomamos café no apartamento de Alvaro. Em sua declaração de bens para assumir como vice-presidente, Álvaro declarou  seus 10 mil livros e seu salário como professor na Unversidade. Eram todos os bens que ele possuía. Evo chegou com pão, depois fomos para Tihuanaku, a cidade indígena mais antiga da Bolívia, onde Evo tomaria posse, antes de sua posse formal em La Paz.

Saímos em uma van, Evo de jeans. Mas assim que o povo que ia caminhando para a cerimonia, descobriu que Evo ia no carro, o parava a cada momento, e ele saía para abraçar e conversar com as pessoas.

Quando chegamos ao fim, Evo nos deixou e foi se encontrar com as autoridades indígenas. Lembro que me sentei na primeira fila do grande espaço aberto, com Eduardo Galeano. De repente, Evo apareceu em um grande arco, vestido com os trajes dos povos indígenas, como um Deus.

As mulheres indígenas limpavam a Praça do Palácio Queimado para receber seu líder. Evo e Álvaro finalmente tomaram posse e iniciaram os governos  mais importantes da história da Bolívia. Eu estive indo a Bolívia regularmente durante muitos anos. Prometi a Evo, em uma das viagens, que o levaria a um jogo de futebol no Maracanã, mas ainda não pude cumprir, mas cumprirei com certeza.

Sempre que encontrava Alvaro em Buenos Aires, faziamos um périplo pelas livrarias, com o carro oficial de Alvaro, operações devastadoras pela quantidade de livros que ele comprava. Sempre lembro o itinerário da livraria. E os livreiros continuaram a me identificar como amigo de Alvaro. Concluída no último momento, a operação de compra, eu o acompanhava, com o carro cheio, super pesado, até o aeroporto militar, onde ele partia  com o avião para La Paz. Quando eu ia vê-lo na Bolívia, sempre levava  livros para ele, é claro. Quando se casou, Álvaro deixou seu modesto e pequeno apartamento, onde os livros cabiam com grande dificuldade, e de mudou para uma casa maior, onde foi capaz de abrigar todos os seus livros, sua biblioteca em constante e imparável crescimento.

Álvaro é o mais importante e o melhor intelectual latino-americano contemporâneo. Me acompanhou, por sua vez, em meu mandato como Secretário Executivo de Clacso. Tenho orgulho de ter tido o processo boliviano como o processo político mais importante em todo meu mandato. Publicamos em Clacso - e também no Brasil - muitos livros de Alvaro.

A dupla Evo-Alvaro foi uma combinação perfeita. O artigo de Alvaro sobre indigenismo e marxismo é uma obra prima, uma brilhante atualização do trabalho de Mariategui, um trabalho teórico de limpeza de campo, indispensável para o surgimento de Evo como líder e o entendimento dos fenômenos bolivianos.

Nós sempre conversamos por telefone, especialmente no auge da luta na Bolívia. Eu o trouxe para o Brasil para o lançamento de seu livro A Potência Plebéia, ele deu uma palestra na Uerj, e eu  pude  mostrar lhe um  pouco do Rio de Janeiro.

Os últimos tempos, aqui e ali, foram turbulentos. Eu o seguia com ansiedade, buscando notícias diretamente ou através de seu fiel chefe de gabinete, Hector. Enviava notícias do Brasil e pedia notícias de lá.

Até que os eventos se precipitaram  de maneira infernal no processo boliviano, levando à renúncia do Evo e do Álvaro,  para evitar um massacre. Vejo a foto de Evo e Álvaro saindo para o México e, ao mesmo tempo, a notícia de que eles não só saquearam a casa de Evo, mas também a do Álvaro,  e queimaram seus 30 mil livros. Imagino, além de toda a dor por tudo o que acontece na Bolívia, aquela dor a mais de Álvaro.

Mas não se preocupe, Álvaro. Nós vamos reconstruir sua biblioteca, livro por livro, no México, na Argentina, no Brasil, na França, em qualquer lugar. Assim como a Bolívia recuperará sua democracia, seu regime plurinacional, o poder do povo. Evo e você voltarão nos braços do povo, como Lula recuperou sua liberdade nos braços do povo.

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