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Marcia Tiburi

Professora de Filosofia, escritora, artista visual

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Pedofilia e sistema de opressão

'O sistema que não protege e tenta culpabilizar uma criança violentada e engravidada é conivente com a pedofilia e, como tal, igualmente perverso', diz Tiburi

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A gravação da audiência e do interrogatório sobre a criança de 11 anos que foi estuprada e engravidada chocou a opinião pública nos últimos dias. 

Os agentes do judiciário não cumpriram a lei da interrupção da gravidez agindo em conformidade com o estado de exceção instaurado desde o golpe de 2016 no Brasil. 

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A posição dos agentes envolvidos coloca problemas éticos que exigem atenção. Tais problemas podem ser vistos na ordem discursiva, ou seja, no texto, que o áudio trouxe a público. 

De uma maneira geral, o interrogatório se sustenta sobre a objetificação ou coisificação do corpo da menina. Colocada no lugar de objeto ou coisa, sua dignidade como pessoa é atingida. Vejamos brevemente como isso se opera. 

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As perguntas feitas para a menina apagam o fato de que se trata de uma criança, ou seja, um sujeito de direitos em um determinado estágio de maturidade física e emocional. As perguntas são feitas como se se tratasse de uma mulher adulta em domínio do seu próprio corpo, da sexualidade e da própria ideia de gravidez.

Além disso, as perguntas e colocações feitas apagam o fato de que a gravidez foi efeito de uma violência sexual pela pressuposição de que a criança saberia responder sobre sua experiência, como se a experiência com a gravidez estivesse livre de violência. Isso serve para apagar a condição da menina engravidada como sujeito de direitos. 

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Um mecanismo opera no discurso: rebaixar a menina a “meio” e retirá-la do lugar de “fim”, ou seja, extirpar dela a dignidade, princípio básico de muitas teorias éticas e dos direitos humanos como um todo. A partir disso, o discurso busca garantir que o lugar de “incubadora” de um “bebê” deveria ser aceito por ela a qualquer custo. Rebaixar a menina à corpo que incuba e gera, serve para elevar o feto à condição de “bebê”, através do uso dessa palavra (também da palavra “bebezinho”), ou seja, elevar o feto à posição de sujeito de direito enquanto se busca tirar o direito da menina de não estar na posição de objeto. 

O direito real da menina a fazer o aborto, foi substituído na narrativa pela fantasia de um “bebê” que poderia nascer e ter uma entre 30 mil famílias para adota-lo. A fantasia do “bebê” e das “30 mil famílias” seriam mais sujeito de direito do que a menina em estado de sofrimento e amparada pela lei, a fazer o aborto. 

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A felicidade de uma outra família alegada para justificar o sofrimento imposto à criança violentada coloca essas famílias como fins e reafirma o lugar da menina como um meio. 

Não e preciso dizer que a criança diante do sistema de justiça foi violentada psiquicamente e também fisicamente, sendo obrigada a permanecer grávida e longe de sua mãe, aprisionada em um abrigo por um mês. 

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A mais básica análise retórica demonstra aspectos que aniquilam a ética do discurso e que permanecem como subtexto. Nesse caso, o caráter chantagista das perguntas e enunciados precisa ser levado a sério. Antecipando e manipulando a fantasia de que se trata de um bebê, pergunta-se à menina se ela “aguentaria” mais duas semanas para formar bem o “bebê”, o “pulmãozinho” e para que ele não “agonizasse” ao ser extirpado do corpo da menina. 

A falaciosidade do discurso é explícita nesses argumentos de apelo à compaixão e à piedade, sendo que a mãe da criança percebe e tenta se defender alegando que seu próprio sofrimento precisa ser considerado. Mas o sofrimento dessa mãe também é desconsiderado e a criança é aprisionada no abrigo distante da mãe que, chorando, pede à juíza para cuidar dela. As agentes da justiça apelam à compaixão que elas mesmas não praticam. Apelam à felicidade de pessoas não envolvidas no caso (30 mil famílias) para sustentar o sofrimento que está diante delas e que elas decidem sustentar e intensificar. 

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Por fim, dentre os muitos aspectos que demonstram lacuna de reflexão ética, há o nível pedofílico do discurso. Nenhum discurso pode ser tomado em abstrato. Toda fala implica atos e pessoas em um circuito de comunicação em que emitir e receber mensagens são complexos e revelam estruturas de gozo e de desejo. Até mesmo o tom de voz, mórbido por exemplo, implica significados. Nesse caso, perguntar a uma menina de 11 anos como ela se sente grávida, se ela sabia como engravidava e, principalmente, se ela tinha dor nos “seios”, pressupõe que esse corpo de criança tem desejo sexual e tem corpo sexuado. Mais uma vez, o que vem à tona, é a objetificação ou coisificação que retiram a dignidade do corpo infantil. Exatamente o que esta em jogo na perversão pedófila. 

A intenção que emerge da narrativa é, ela mesma, pedofílica. Se entendemos que a pedofilia é uma perversão sexual, ela pode se manter latente ou chegar ao ato físico. Mas pode também ser ato de fala. Seja o que for, ela precisa ser tratada pela justiça e pela psiquiatria. 

O sistema que não protege crianças e sorrateiramente tenta culpabilizar uma criança violentada e engravidada, é conivente com a pedofilia e, como tal, igualmente perverso.

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